Prezado Prof. Jorge Euzébio Assumpção
Certa vez fui escaldo para fiscalizar as eleições num certo
clube transformado em zona eleitoral em Caxias do Sul. Era um dia nebuloso e
frio. As primeiras pessoas a chegar eram duas idosas que falavam num dialeto
italiano. Ao se aproximarem percebi que elas comentavam sobre mim dizendo que
sou brasileiro negro. Indignado respondi no mesmo dialeto que elas também eram
brasileiras como eu e tão negras quanto eu. Só que eu me honrava de ser
brasileiro, mesmo não sendo negro e me honrava de minhas amizades com negros e
negras! Levaram um susto com minha reação ante seu racismo, intolerância e
arrogância, mesmo que tenham saído de uma igreja onde lancharam hóstias
consagradas e onde se falara do amor de Deus e ao próximo.
Eu sempre soube das contribuições de nosso Rio Grande do Sul
para a libertação dos escravos negros. “Soube que a famosa Guerra dos Farrapos”,
que durou 10 anos, incorporara os negros na luta contra o império que
massacrava o Brasil ao arrancar de nosso povo pesados impostos sem a devolução
em investimentos sociais, mandando nosso dinheiro pátrio para a matriz da
colônia, em Portugal. É por saber disso que assino meus trabalhos aqui como “bispo
cabano – em homenagem às cabanadas heroicas do Pará, onde me tornei bispo – e farrapo”,
em homenagem à “Guerra dos Farrapos”, que foi o primeiro sinal de libertação
dos escravos no Brasil.
Porém, querido Prof. Jorge, muitos descendentes de italianos,
alemães, poloneses e outros, empilhados desumanamente nas montanhas do Rio
Grande do Sul, transformaram pedras em vinho, leite e pão, mesmo espoliados
porque expulsos da Europa que não mais os acolheu, preteriram os negros,
verdadeiros precursores da libertação brasileira da colonização europeia que
sempre a todos nos escravizaram.
Em teu trabalho demonstras que a pesquisa interessada
desmascara mitos caros ao falso “gauchismo”, prenhe de racismo, mitos e romances
preconceituosos como o de Caxias, de Bento Gonçalves e David Canabbaro,
curiosamente os dois primeiros nomes dados a cidades importantes industrial, economicamente
e fomentadoras de racismo no Rio Grande do Sul, ao lado de outras que se
tornaram máculas cimentadoras de discriminações, como descobres em tua preciosa
pesquisa.
Vale a pena sublinhar em tua pesquisa o espírito de
resistência dos negros e o medo de seus proprietários, que temiam rebelião.
Tanto que montavam reforçadas guardas para impedir que os escravos matassem
seus capitães, muitos deles negros vendidos aos proprietários.
O medo da classe dominante é histórico e muito bem ressaltado
pelo médico e historiador da “geografia da fome” no Nordeste, Josué de Castro,
quando escreveu: “Enquanto dois terços passam fome o um terço responsável por
sua miséria não dorme de medo.”
Desde cedo historicamente que se desenham a resistência dos
escravizados e o medo dos dominadores, por isso esses sempre se armaram até os
dentes para se manter dominadores até enquanto puderam, para sempre caírem derrubados
pelo dominados ou de podres.
Cumprimentou-te orgulhoso por teu trabalho, meu irmão e
colega. Sou gaúcho dos quatro costados, como se diz aí no nosso Rio Grande. Só
não sou racista nem nunca fui. Pelo contrário, incrivelmente, apesar de não ser
negro, infelizmente, sofri muitas discriminações em setores colonizados aí e de
mentalidade embranquecida e nazifascista. Claro, na verdade sofri mesmo
preconceitos por sempre me posicionar ao lado dos injustiçados, no fundo é a
essa a verdadeira mola propulsora de todas as discriminações.
Saúdo-te desde o Centro Oeste de nosso País, onde os negros e
as negras fizeram história, quase nunca também reconhecid@s amad@s e
respeitad@s.
Posto abaixo com alegria a tua entrevista de imensurável
valor. Penso trazer-te aqui para expores teu trabalho num fórum que será
promovido pela Ibrapaz.
Abraços eufóricos, críticos e fraternos na luta pela justiça
e pela paz.
Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e republicano, sempre com
muito orgulho.
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O racismo e a sonegação da história afrodescendente no Rio Grande do Sul
Divulgação
“Há uma apropriação do passado dos negros pelos imigrantes
não só por causa dos imigrantes, mas devido ao mito de o Rio Grande do
Sul ser um estado diferenciado”, pontua o historiador Jorge Euzébio
Assunção
30/05/2014
Do IHU On-line
“Qual é o símbolo de que temos presença negra no Rio Grande do Sul?”, pergunta Jorge Euzébio Assumpção, na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line.
A resposta é categórica: “Nenhuma. Não há nenhum símbolo que demonstre a
presença negra no estado. O negro passa quase que invisível pela
história do Rio Grande do Sul e essa invisibilidade faz
parte do racismo sulino, ou seja, ao negar e sonegar o papel dos negros
no estado, estamos praticando um ato de racismo, porque se está,
inclusive, escondendo as fontes históricas”.
Autor do livro Pelotas: escravidão e charqueadas 1780-1888 (Fcm Editora, 2013),
resultado da sua dissertação de mestrado, o historiador demonstra que
os afrodescendentes tiveram um papel fundamental no desenvolvimento
econômico do Rio Grande do Sul, o qual é atribuído
majoritariamente aos imigrantes alemães, italianos e açorianos, que
colonizaram o estado a partir da segunda década de 1800. “Com a criação
das grandes charqueadas, a partir de 1780, houve uma introdução de
negros em grande escala no Rio Grande do Sul.
Pelotas foi a cidade em que proporcionalmente houve maior número de trabalhadores escravizados no Rio Grande do Sul, e, por consequência, o maior número de negros proporcionalmente. Calcula-se que Pelotas chegou a ter mais de 70% da sua população descendente de negros escravizados ou não”. Assumpção
esclarece que não está negando o valor do imigrante na história gaúcha,
“mas tentando restabelecer uma ordem de dizer que não foram somente os
imigrantes os responsáveis pelo desenvolvimento do Rio Grande do Sul, mas também os negros, os quais tiveram uma participação anterior à do imigrante”.
De
acordo com o pesquisador, a historiografia gaúcha passou a ser revista a
partir dos anos 1980, mas ainda persiste no imaginário popular a imagem
do gaúcho e da formação de um estado de imigrantes. “Há todo um mito em
torno do imigrante do Sul do país, e que este é o estado mais europeu
da nação. Por isso, grande parte da pesquisa dos historiadores sonega a
participação do negro, porque eles contribuem com esse mito de que o Rio Grande do Sul é formado por imigrantes. Isso leva, por sua vez, ao mito do gauchismo no sentido de que no Sul
se teve uma formação diferenciada por conta da qualidade aventureira do
gaúcho e aqui a escravidão não se fez presente”. E acrescenta: “O Rio Grande do Sul
é, sim, um estado racista. Contudo, com a vinda dos imigrantes, a
quantidade de negros pareceu diminuir diante da quantidade desses
imigrantes que entraram no estado. Mas esse mito mantém-se até hoje”.
Jorge Euzébio Assumpção é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente é professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade Porto-Alegrense – FAPA, onde coordena o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB, e da Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como a historiografia tem abordado a atuação dos afrodescendentes no Rio Grande do Sul?
Jorge Euzébio Assumpção –
De certa forma, até alguns anos atrás, essa questão não era abordada,
porque para grande parte dos historiadores, os negros que viviam no Sul
não haviam participado efetivamente da história do Rio Grande do Sul. A partir dos anos 1980 inicia um resgate da história da vinda dos negros para o estado e de sua importância.
Nesse meio tempo, houve uma lacuna na história, porque alguns historiadores negaram a participação do negro na história do Rio Grande do Sul,
dizendo que ela aconteceu, mas foi pequena, sem tratar da dimensão que
deveria, uma vez que o negro foi de fundamental importância para a
conquista e a prosperidade do território sulino. Quase sempre que se
fala do progresso do Sul, se atribui essa função aos imigrantes alemães e italianos
e se sonega a participação da atuação dos afrodescendentes, quando se
sabe que eles tiveram uma participação marcante nesse processo, porque
quando da chegada dos portugueses no Sul, eles trouxeram os negros, os quais se fizeram presentes antes da oficialização do sul como território português.
IHU
On-Line - O senhor menciona que a historiografia tradicional costuma
associar o desenvolvimento do Rio Grande do Sul com a vinda dos
imigrantes europeus, esquecendo-se dos afrodescendentes. Qual era o
contexto do Sul do Brasil antes da chegada dos imigrantes e qual foi a
atuação dos afrodescendentes nesse período?
Jorge Euzébio Assumpção – O Sul do país teve uma ocupação tardia porque à época havia um modelo agroexportador do Brasil para Portugal, ou seja, da colônia para a metrópole, e o Sul não fornecia as mercadorias que a metrópole queria, como cana-de-açúcar. O Rio Grande do Sul,
nesse momento, foi deixado de lado, mas com as guerras de fronteira,
posteriormente foi dado um destaque à região. Sendo assim, houve um
interesse político militar na ocupação do Sul do país e, somente aí, os portugueses começam a se interessar pela ocupação do Rio Grande do Sul efetivamente. Quando iniciou a ocupação do Rio Grande do Sul,
os negros começaram a entrar no território juntamente com os
portugueses e foram fundadas algumas colônias, como a de Sacramento.
Isso se deu antes da chegada dos imigrantes no Sul.
IHU On-Line – Qual foi a relação dos imigrantes com os negros que estavam no Sul do país? Eles escravizaram os negros?
Jorge Euzébio Assumpção –
Sim. Embora a lei não permitisse, os imigrantes tinham escravos, sim,
por conta da grande propriedade rural. Apesar de os imigrantes não terem
vindo para o Sul com uma grande propriedade rural, mesmo assim, eles precisavam da mão de obra.
Então, em menor escala, escravizaram, sim. Há, inclusive, documentos que mostram que os colonos de São Leopoldo
tinham escravos. Nesse sentido, o imigrante vai fazer parte desse
contexto escravista, muito embora ele venha para ocupar a pequena
propriedade rural.
Houve um estímulo no Sul para a ocupação de terras. Agora, esse mesmo estímulo dado ao imigrante não foi oferecido para o negro, porque a mão de obra do negro era barata.
Portanto,
quando se precisava de trabalhadores, pegava-se o negro, mas como
também era necessária uma ocupação do território, chamou-se o imigrante,
porque nada melhor do que a pigmentação da pele para diferenciar os
inferiores, ou seja, o negro enquanto escravo.
IHU
On-Line - Qual era o contexto histórico, social e político de Pelotas em
1814? Por que a cidade foi o grande centro afro-brasileiro da província
e como se dava a relação entre afrodescendentes e não afrodescendentes?
Jorge Euzébio Assumpção –
O Sul do país, diferente do resto do país, tem um foco na produção
interna, e não externa. Assim, produzia produtos que alimentavam o
mercado interno, como o charque a partir do gado. Antes, essa produção
era feita no Ceará, mas com a seca, José Pinto Martins, um cearense, mudou-se para o Sul e instalou a primeira grande charqueada em Pelotas, no Rio Grande do Sul, porque a lagoa favorecia o escoamento da mercadoria. Embora o charque já fosse produzido no estado, com José Pinto Martins
iniciou-se a produção em grande escala, a qual favoreceu o crescimento e
o desenvolvimento de Pelotas. O charque trouxe a riqueza para a cidade,
tornando-a a grande cidade do Rio Grande do Sul no século XIX, sendo mais importante que Porto Alegre. As companhias de teatro, antes de apresentarem as peças em Porto Alegre, as apresentavam em Pelotas. Então, o desenvolvimento de Pelotas se deu através da mão de obra escrava, por conta da produção de charque.
IHU On-Line – Nessa época o número de escravos era maior do que a população em geral da cidade?
Jorge Euzébio Assumpção – O charque deu condições para que entrasse no Rio Grande do Sul
uma quantidade grande de negros escravos. Até então havia uma pequena,
mas significativa, entrada de negros no estado. Mas com a criação das
grandes charqueadas, a partir de 1780, houve uma introdução de negros em
grande escala no Rio Grande do Sul.
Pelotas foi a cidade em que proporcionalmente houve maior número de trabalhadores escravizados no Rio Grande do Sul, e, por consequência, o maior número de negros proporcionalmente. Calcula-se que Pelotas
chegou a ter mais de 70% da sua população descendente de negros
escravizados ou não, porque nem todo negro era escravo. Já nessa época,
no século XIX, o censo de 1914 demonstra um número
significativo de negros não escravos. Mas não é pelo fato de esses
negros não serem escravos que eles tiveram uma vida semelhante à do
homem branco trabalhador.
IHU On-Line – Os negros não escravos tinham escravos?
Jorge Euzébio Assumpção –
Muito poucos, porque quase sempre quando um negro comprava um escravo, o
fazia para poder comprar a sua carta de alforria. Era aceitável, à
época, que o negro fizesse pequenos “bicos” e, através
deles, acumulava uma certa quantidade de riqueza e com ela comprava um
escravo para que ele ficasse livre. Mas o número de negros que possuíam
escravos era muito reduzido.
IHU On-Line – É possível estimar quantos escravos havia em Pelotas trabalhando nas charqueadas entre 1780 e 1888?
Jorge Euzébio Assumpção – O censo de 1814
mostra que havia 32.300 pessoas residindo na cidade. Dessas, 8.655 eram
indígenas, 5.399, homens livres, e 20.611 eram escravos. Se somarmos os
indígenas, os livres negros e os recém-nascidos descendentes de negros,
é possível verificar uma população significativa de escravos. Se esses
escravos somavam esse percentual, mostra-se que eles não foram
insignificantes como alguns historiadores fazem parecer.
IHU
On-Line – Há um discurso de que o Rio Grande do Sul é o estado mais
racista do Brasil. Esse discurso está atrelado a essa sonegação de
informações acerca do papel dos negros no estado? Em outros estados,
como Minas Gerais, houve bastante trabalho escravo, mas isso é visível
na memória de Ouro Preto, por exemplo. Por que o mesmo não ocorre no Rio
Grande do Sul?
Jorge Euzébio Assumpção – Quando eu vou para outros estados e digo que sou do Rio Grande do Sul, as pessoas não acreditam, porque o imaginário que se tem é que no Sul só existem pessoas brancas. Há todo um mito em torno do imigrante do Sul
do país, e que este é o estado mais europeu da nação. Por isso, grande
parte da pesquisa dos historiadores sonega a participação do negro,
porque eles contribuem com esse mito de que o Rio Grande do Sul
é formado por imigrantes. Isso leva, por sua vez, ao mito do gauchismo
no sentido de que no Sul se teve uma formação diferenciada por conta da
qualidade aventureira do gaúcho e aqui a escravidão não se fez presente.
O Rio Grande do Sul é, sim, um estado racista.
Contudo,
com a vinda dos imigrantes, a quantidade de negros pareceu diminuir
diante da quantidade desses imigrantes que entraram no estado. E esse
mito mantém-se até hoje.
Qual é o símbolo de que temos presença negra no Rio Grande do Sul? Nenhuma. Não há nenhum símbolo que demonstre a presença negra no estado. O negro passa quase que invisível pela história do Rio Grande do Sul
e essa invisibilidade faz parte do racismo sulino, ou seja, ao negar e
sonegar, estamos praticando um ato de racismo, porque se está,
inclusive, escondendo as fontes históricas.
IHU On-Line – Trata-se de um racismo no sentido de sonegar a informação do papel do negro no desenvolvimento do estado?
Jorge Euzébio Assumpção –
Sonegar essa informação é uma forma de ser racista no sentido de que
não se dá o mérito às pessoas, ou seja, aos negros, pelo desenvolvimento
do estado. Esse processo está dentro da nossa história e de todo o “romanceamento” da história do Rio Grande do Sul,
a qual foi contada de uma maneira mitológica pelos historiadores.
Dentro desse contexto, não pode haver a escravidão, porque a partir do
momento em que se diz que no estado teve escravo e que ele foi
fundamental para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul, se nega o mito do gauchismo.
Não estou negando que se dê valor ao imigrante, deve-se dar, mas
tentando restabelecer uma ordem de dizer que não foram somente os
imigrantes os responsáveis pelo desenvolvimento do Rio Grande do Sul, mas também os negros, os quais tiveram uma participação anterior à do imigrante.
Na casa da Feitoria, em São Leopoldo,
os negros faziam linho cânhamo, mas hoje essa é considerada a casa do
imigrante. Há, portanto, uma apropriação do passado dos negros pelos
imigrantes não só por causa dos imigrantes, mas devido ao mito de o Rio Grande do Sul ser um estado diferenciado. Estamos tentando mostrar que o Rio Grande do Sul não é um estado diferenciado; ele tem os mesmos componentes que teve o restante do Brasil à época.
IHU
On-Line - A sua pesquisa trata da escravidão nas charqueadas de
Pelotas, no Rio Grande do Sul, entre 1780 e 1888. O que a sua pesquisa
aponta sobre a escravidão no extremo sul do Rio Grande do Sul,
especialmente nas charqueadas?
Jorge Euzébio Assumpção –
As charqueadas eram ambientes insalubres e nenhum homem livre queria
trabalhar nelas. Historiadores da época as narram como lugares sujos,
onde se matava o boi, onde havia sangue e vinham as aves; era um local
totalmente anti-higiênico.
Não havendo homens livres para
trabalhar nas charqueadas, os negros foram obrigados a trabalhar nelas e
foram submetidos a um regime monstruoso, porque eles trabalhavam com
faca, e o escravo armado representava risco. Ocorreu, portanto, uma
grande vigilância sobre eles, e não raro houve escravos matando e dando
facadas nos capatazes e tentando matar os senhores. A violência nas
charqueadas era muito grande, porque o tratamento dado aos negros era
cruel. Tanto é que Auguste de Saint-Hilaire relata que nunca viu alguém ser tão maltratado como eram os escravos nas charqueadas.
Essa
relação entre senhor e escravo foi marcada pela violência. O negro
nunca se submeteu à escravidão e, portanto, partia para o confronto, o
qual nem sempre era aberto, porque as condições não eram favoráveis a
ele. Assim, a fuga foi a manifestação mais direta dessa resistência.
Entretanto, ainda não se tem, estatisticamente, o número de negros que
fugiram do trabalho escravo. Vários desses negros que fugiram do
trabalho escravo, nos momentos de conflito, como a Guerra dos Farrapos, foram para estados vizinhos, como o Uruguai, onde eles se alistavam no exército.
IHU On-Line – No Uruguai havia outra consciência em relação aos negros?
Jorge Euzébio Assumpção – Sim, porque no Uruguai a abolição dos escravos se deu muito antes do que no Brasil. Chegando lá, os negros iam para o exército uruguaio, tanto que o exército de Artigas era composto basicamente por negros fugidos. Os Farrapos foram, muitas vezes, ao Uruguai buscar os escravos fugidos. Além disso, a ida dos negros para o Uruguai
causava medo aos senhores, porque eles temiam que os negros voltassem
para atacar suas terras. Esse foi um dos motivos pelos quais foi dada a
alforria aos nascidos negros.
Grande parte do exército dos Farrapos
era composta por negros. Esse é outro fato ignorado pela historiografia
gaúcha. Esses negros foram para a guerra com a promessa de, depois,
serem libertos.
Contudo, com o acordo de paz entre o Império e os Farrapos,
não se soube o que fazer com os negros, porque o império não aceitava
que fosse dada a liberdade aos escravos. Sendo assim, foi feito um
acordo entre os Farrapos e o Império, no qual o Barão de Caxias e David Canabarro tramaram o assassinato dos negros: Canabarro desarmou os negros e avisou Caxias, que então os atacou. O acampamento Farrapos
não era um acampamento onde todos ficavam juntos: índios, negros e
brancos ficavam divididos cada um no seu grupo. Nem ali existiu uma
democracia racial. Quando Caxias mandou atacar o grupo
dos negros, ele ressaltou que era para atacar os negros e poupar a vida
dos índios e dos brancos, “pois essa pobre gente poderia ser útil algum
dia”. Essa foi a chamada traição de Porongos, que até hoje é discutida.
Os tradicionalistas não aceitam essa discussão, porque toca na imagem de Canabarro, que é um dos ícones deles.
Mas
esse fato está documentado e os documentos provam que os negros foram
assassinados. Após esse episódio, foi assinada a paz, mas a escravidão
permaneceu no Rio Grande do Sul. Portanto, os negros que lutaram com os Farrapos e não foram mortos, foram vendidos como escravos. Esse é outro mito de que os Farrapos queriam a libertação dos escravos. No anteprojeto de constituição elaborado pelos Farrapos,
constava a permanência da escravidão. Portanto, nós construímos uma
história cheia de mitos e romances, e é difícil ir contra eles, porque
já estão enraizados na cultura gaúcha.
IHU On-Line - A
que o senhor atribui o fato de cidades como Porto Alegre, Rio Pardo,
Cachoeirinha, Pelotas e Piratini serem as principais cidades escravistas
no Rio Grande do Sul em 1814?
Jorge Euzébio Assumpção –
Porque esses eram os grandes centros urbanos. Nas principais cidades
gaúchas havia grande concentração de escravos e eram eles que faziam
tudo. Porto Alegre é uma cidade negra. O trabalho braçal de lavar roupa, pegar água no arroio Dilúvio,
era feito pelos negros. Os senhores não faziam essas atividades. Embora
Porto Alegre tivesse um comércio forte, havia uso de mão de obra
escrava, porque quem trabalhava no século XIX eram os escravos. Em todo o Brasil foi assim.
IHU On-Line – No Rio Grande do Sul não há marcas visíveis do trabalho escravo, como as senzalas, preservadas em outros estados brasileiros. Como se dava a relação entre escravos e proprietários de terra?
Jorge Euzébio Assumpção – No Rio Grande do Sul,
os proprietários de terras não tinham um número grande escravos como
havia em outras regiões, porque a atividade desenvolvida aqui fazia com
que menos escravos fossem necessários. Então, enquanto nas plantações de
café de Minas Gerais havia mais de 150 escravos por fazenda, no Rio Grande do Sul
não havia essa necessidade. As estâncias gaúchas eram marcadas por
territórios enormes de terra, mas a demanda de trabalho não requeria um
grande número de escravos. Entretanto, quase todas as famílias tinham um
ou dois escravos, que moravam na casa da família ou fora dela. As senzalas
existiam onde ha via grande concentração de escravos. Nos casos
contrários, os escravos moravam em casinhas menores, nos fundos das
casas dos senhores ou com eles.
Além disso, no Rio Grande do Sul nunca houve uma preocupação em preservar os vestígios de mão de obra escrava; eles foram apagados ao longo dos anos. Se o Rio Grande do Sul diz que não teve escravos,
como se poderiam preservar as senzalas que mostram a presença física
dos escravos? Essa informação foi sonegada, enquanto em outros estados
houve uma conscientização de preservação histórica.
IHU On-Line – Como ocorreu o processo de abolição no Rio Grande do Sul?
Jorge Euzébio Assumpção – Vamos tratar do mito da abolição dos escravos no Rio Grande do Sul. Os livros de história dizem que a abolição se deu antes da assinatura da Lei Áurea,
ou seja, que em 1884 os escravos foram libertos. Isso é uma grande
farsa. O que houve naquele ano foi uma campanha de abolição, mas os
proprietários de terras no Rio Grande do Sul, tentando manter a escravidão e, por outro lado, sentindo a pressão fortíssima dos escravos, “libertaram”
os negros dando a eles uma carta com cláusula de prestação de serviço,
ou seja, a libertação era dada ao escravo com a condição de ele
trabalhar para o senhor até a morte deste, ou então por alguns anos.
Essa medida teve um impacto grande e desde então se disse que no Rio Grande do Sul a escravidão acabou antes de 1888. Mas quase todas as cartas dadas em 1884 eram prestação de serviços.
Os
historiadores demarcaram, portanto, o fim da escravidão no estado nessa
época, o que não aconteceu, porque as cartas de alforria poderiam ser
revogadas pelos senhores a qualquer momento e, além disso, eram os
senhores que ficavam com as cartas. Portanto, a abolição de 1884 foi uma falsa abolição, diferente do que aconteceu no Ceará e no Amazonas,
onde os escravos foram libertos em 1884. Essa foi uma forma de acalmar
os negros mediante as pressões internas e externas e o número de negros
que estava resistindo com maior intensidade. Foi um momento tenso e,
para aliviar a tensão, os senhores fizeram esse grande jogo com os
escravos.
IHU On-Line – Há marcas vivas da escravidão no Rio Grande do Sul?
Jorge Euzébio Assumpção – Em Pelotas, por exemplo, quase todos os grandes prédios foram construídos por escravos, ou seja, tudo que foi construído no século XIX
teve participação deles. Agora, essa marca não está visível, mas se
procurarmos na documentação quem eram os pedreiros, carpinteiros,
veremos que todos eles foram escravos. As cercas de pedras que existem
no interior do estado também foram feitas pelos escravos. Então, a mão
de obra escrava está marcada na construção de Pelotas, Porto Alegre
e dos grandes centros urbanos da época. A documentação prova isso e não
temos como sonegar essa informação, apesar de termos poucas marcas
visíveis.
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