O Paraguai: de tropéis e tropelias
No dia em que Fernando Lugo foi deposto da presidência, ninguém ouviu, pelas ruas de Assunção, os tropéis da cavalaria. Mas todos, em Assunção e no resto do mundo, constataram as tropelias do Congresso, que, em exatas 30 horas, fulminou o sonho fugaz de resgatar um país. No lugar de taques e canhões, sabidos e vendilhões. Nada mudou: quem de novo leva a melhor é a mesma súcia de sempre. Tentou governar com um Congresso hostil, que impediu que seu governo avançasse um passo sequer rumo à prometida ruptura com o passado. O artigo é de Eric Nepomuceno.
Eric Nepomuceno*
E como o que aconteceu de novo em uma das nossas comarcas, apesar de todos os esforços e esperanças, acontecido está, me resta roubar o título de um livro de meu bom amigo, o escritor nicaragüense Sergio Ramírez, para falar do Paraguai: De tropéis e tropelias.
No dia em que Fernando Lugo foi deposto da presidência, ninguém ouviu, pelas ruas de Assunção, os tropéis da cavalaria. Mas todos, em Assunção e no resto do mundo, constataram as tropelias do Congresso, que, em exatas 30 horas, fulminou o sonho fugaz de resgatar um país. No lugar de taques e canhões, sabidos e vendilhões. Nada mudou: quem de novo leva a melhor é a mesma súcia de sempre.
Quando foi eleito, Fernando Lugo, bispo militante da Teoria da Libertação, tinha 57 anos. Sim: era e é mais um dos milhões de paraguaios nascidos debaixo de seis décadas do jugo cruel do Partido Colorado, da ditadura sanguinária e corrupta de Alfredo Stroessner e seus herdeiros. E que agora vê como tudo pode voltar ao que era.
O que aconteceu, acontecido está, porque a queda de Fernando Lugo, mais do que irreversível, foi calculada com a meticulosidade de um cirurgião hábil, que sabe o momento exato da amputação.
Pois esse cirurgião atende por um nome tão amplo como dúbio: sistema. E, em se tratando do Paraguai, o sistema é complicado. Significa interesses que vão do uso descontrolado de agrotóxicos ao tráfico de armas e drogas, da ocupação de terras públicas à corrupção mais desavergonhada, do controle do poder pelas Forças Armadas ao poder de controlar as próprias Forças Armadas.
Enfim, tudo que pode dominar, e domina, um país que vem de uma tenebrosa trajetória de barbáries e espoliações.
A nove meses da eleição que definiria o sucessor de Fernando Lugo, os limites de tolerância do sistema de sempre se esgotaram.
As forças de domínio desse país sacrificado e sufocado – o Partido Colorado e suas ramificações de um lado, e de outro seus adversários reunidos debaixo de um nome pomposo e mais extenso que seu caráter, o Partido dos Liberais Radicais Autênticos – se uniram para extirpar a figura incômoda de um presidente eleito por 41% dos paraguaios, e que reuniu punhados de sonhos e esperanças. E que em boa medida não cumpriu porque, como dizia em uma canção outro bom amigo, o uruguaio Alfredo Zitarroza, ‘quis querer, mas não pôde poder.’
Não se trata – esse desfiladeiro entre querer e poder – de algo novo na história da América Latina. Ainda assim, o processo que se iniciou com a candidatura de Fernando Lugo, sua eleição, seu governo, e sua deposição, surge como alerta exemplar para todos – todos – os países da região. Por exemplo: por que fulminá-lo agora, quando faltavam nove meses para o fim de seu mandato? E por que de maneira tão precipitada?
Houve quem dissesse que a rapidez era necessária para impedir que colunas de camponeses sem terra se mobilizassem, no interior, rumo a Assunção. Pode ser que tivessem razão. Pode ser.
Outro exemplo: por que agora, faltando nove meses para o processo eleitoral que definiria o sucessor de Lugo?
Há quem diga que para que as forças de sempre, os colorados e os liberais, se reorganizem para repartir o butim. Pode ser.
Existem questões, porém, que pairam sobre esses aspectos, e que dizem respeito direto ao Brasil.
O Paraguai é hoje o quarto ou quinto maior exportador de soja do planeta. E cerca de 70% dessa soja é plantada por brasileiros que, ao longo de trinta ou quarenta anos, se afincaram no país. A imensa maioria desses brasileiros comprou títulos altamente duvidosos, sabendo que eram duvidosos. Durante décadas a ditadura de Stroessner vendeu e revendeu terras públicas de maneira ilegal. Afastado o verdugo, fatiada sua herança, essas terras continuaram sendo negociadas de maneira ilegal.
E quem julgava a legalidade ou ilegalidade? Um poder judiciário imposto por Stroessner ou seus herdeiros. E julgava com base numa legislação, feita por um poder legislativo criado e cevado pelo mesmo sistema.
Para entender a queda de Lugo, é importante recordar que ele se elegeu pelo voto de quem nunca teve voz, e jamais teve a própria existência reconhecida. Foi eleito, além do mais, com o apoio de uma rede de partidos e interesses que correspondia a qualquer coisa – menos ao que ele se propunha a fazer.
Tentou governar com um Congresso hostil, que impediu que seu governo avançasse um passo sequer rumo à prometida ruptura com o passado.
Um governo erguido sobre raízes tão frágeis poderia reagir à tentação de permanecer nas mãos dos mesmos de sempre?
E daí vem outra pergunta: um Estado tão frágil poderá sobreviver sem o apoio decidido de seus vizinhos? Acho que não.
Ontem, sem querer, ao escrever sobre o Paraguai, mencionei o novo presidente Francisco Franco. Erro evidente: o Franco em questão é Federico, não Francisco.
Francisco Franco foi aquele espanhol baixinho e barrigudo que imperou sobre a Espanha, a sangue e fogo, durante quase quatro décadas, e, alucinado pelo próprio poder, isolou a Espanha do mundo.
Agora, depois de anos de isolamento e asfixia, o Paraguai merece ao menos a chance de tentar mudar. E nos resta ver até que ponto existem diferenças entre Federico Franco e Francisco Franco, entre a Espanha das trevas e o Paraguai entrevado.
Diante da Espanha de Francisco Franco, a Europa se calou.
Diante do Paraguai de Federico Franco, a América Latina seguirá o exemplo?
É de se esperar que não.
Fonte: Carta Maior
*Jornalista, escritor e tradutor do espanhol,correspondente internacional. Vencedor por duas vezes do Prêmio Jabuti, promovido pela Câmara Brasileira do Livro. Traduziu obras dos principais autores contemporâneos da literatura hispânica: Gabriel García Márquez, Juan Rulfo, Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, entre outros. Como escritor, publicou diversos livros na área da ficção, não-ficção e juvenil, entre os quais: Memórias de um setembro na praça (1979), Quarenta dólares e outras histórias (1987), Hemingway na Espanha (1991), Coisas do mundo (1994), A palavra nunca (1997) e Quarta-feira (1998). Obras publicadas no exterior: Hemingway en España (1979), Contradanza y otras histórias (1982) e Antes del invierno (1984). Atualmente, escreve artigos e reportagens no Brasil, Espanha, México e Uruguai e em jornais como: El País, de Madrid, e Página 12, de Buenos Aires. Escreveu, também, roteiros em co-produção com a TV Espanhola e produtoras da Holanda e Inglaterra; autor do texto final do documentário: Vinícius, de Miguel Faria Jr. Seu lançamento mais recente – O massacre (2007) - é uma reportagem sobre o conflito entre a polícia do Para e os integrantes do Movimento dos Sem Terra, em Eldorado do Carajás.
No dia em que Fernando Lugo foi deposto da presidência, ninguém ouviu, pelas ruas de Assunção, os tropéis da cavalaria. Mas todos, em Assunção e no resto do mundo, constataram as tropelias do Congresso, que, em exatas 30 horas, fulminou o sonho fugaz de resgatar um país. No lugar de taques e canhões, sabidos e vendilhões. Nada mudou: quem de novo leva a melhor é a mesma súcia de sempre.
Quando foi eleito, Fernando Lugo, bispo militante da Teoria da Libertação, tinha 57 anos. Sim: era e é mais um dos milhões de paraguaios nascidos debaixo de seis décadas do jugo cruel do Partido Colorado, da ditadura sanguinária e corrupta de Alfredo Stroessner e seus herdeiros. E que agora vê como tudo pode voltar ao que era.
O que aconteceu, acontecido está, porque a queda de Fernando Lugo, mais do que irreversível, foi calculada com a meticulosidade de um cirurgião hábil, que sabe o momento exato da amputação.
Pois esse cirurgião atende por um nome tão amplo como dúbio: sistema. E, em se tratando do Paraguai, o sistema é complicado. Significa interesses que vão do uso descontrolado de agrotóxicos ao tráfico de armas e drogas, da ocupação de terras públicas à corrupção mais desavergonhada, do controle do poder pelas Forças Armadas ao poder de controlar as próprias Forças Armadas.
Enfim, tudo que pode dominar, e domina, um país que vem de uma tenebrosa trajetória de barbáries e espoliações.
A nove meses da eleição que definiria o sucessor de Fernando Lugo, os limites de tolerância do sistema de sempre se esgotaram.
As forças de domínio desse país sacrificado e sufocado – o Partido Colorado e suas ramificações de um lado, e de outro seus adversários reunidos debaixo de um nome pomposo e mais extenso que seu caráter, o Partido dos Liberais Radicais Autênticos – se uniram para extirpar a figura incômoda de um presidente eleito por 41% dos paraguaios, e que reuniu punhados de sonhos e esperanças. E que em boa medida não cumpriu porque, como dizia em uma canção outro bom amigo, o uruguaio Alfredo Zitarroza, ‘quis querer, mas não pôde poder.’
Não se trata – esse desfiladeiro entre querer e poder – de algo novo na história da América Latina. Ainda assim, o processo que se iniciou com a candidatura de Fernando Lugo, sua eleição, seu governo, e sua deposição, surge como alerta exemplar para todos – todos – os países da região. Por exemplo: por que fulminá-lo agora, quando faltavam nove meses para o fim de seu mandato? E por que de maneira tão precipitada?
Houve quem dissesse que a rapidez era necessária para impedir que colunas de camponeses sem terra se mobilizassem, no interior, rumo a Assunção. Pode ser que tivessem razão. Pode ser.
Outro exemplo: por que agora, faltando nove meses para o processo eleitoral que definiria o sucessor de Lugo?
Há quem diga que para que as forças de sempre, os colorados e os liberais, se reorganizem para repartir o butim. Pode ser.
Existem questões, porém, que pairam sobre esses aspectos, e que dizem respeito direto ao Brasil.
O Paraguai é hoje o quarto ou quinto maior exportador de soja do planeta. E cerca de 70% dessa soja é plantada por brasileiros que, ao longo de trinta ou quarenta anos, se afincaram no país. A imensa maioria desses brasileiros comprou títulos altamente duvidosos, sabendo que eram duvidosos. Durante décadas a ditadura de Stroessner vendeu e revendeu terras públicas de maneira ilegal. Afastado o verdugo, fatiada sua herança, essas terras continuaram sendo negociadas de maneira ilegal.
E quem julgava a legalidade ou ilegalidade? Um poder judiciário imposto por Stroessner ou seus herdeiros. E julgava com base numa legislação, feita por um poder legislativo criado e cevado pelo mesmo sistema.
Para entender a queda de Lugo, é importante recordar que ele se elegeu pelo voto de quem nunca teve voz, e jamais teve a própria existência reconhecida. Foi eleito, além do mais, com o apoio de uma rede de partidos e interesses que correspondia a qualquer coisa – menos ao que ele se propunha a fazer.
Tentou governar com um Congresso hostil, que impediu que seu governo avançasse um passo sequer rumo à prometida ruptura com o passado.
Um governo erguido sobre raízes tão frágeis poderia reagir à tentação de permanecer nas mãos dos mesmos de sempre?
E daí vem outra pergunta: um Estado tão frágil poderá sobreviver sem o apoio decidido de seus vizinhos? Acho que não.
Ontem, sem querer, ao escrever sobre o Paraguai, mencionei o novo presidente Francisco Franco. Erro evidente: o Franco em questão é Federico, não Francisco.
Francisco Franco foi aquele espanhol baixinho e barrigudo que imperou sobre a Espanha, a sangue e fogo, durante quase quatro décadas, e, alucinado pelo próprio poder, isolou a Espanha do mundo.
Agora, depois de anos de isolamento e asfixia, o Paraguai merece ao menos a chance de tentar mudar. E nos resta ver até que ponto existem diferenças entre Federico Franco e Francisco Franco, entre a Espanha das trevas e o Paraguai entrevado.
Diante da Espanha de Francisco Franco, a Europa se calou.
Diante do Paraguai de Federico Franco, a América Latina seguirá o exemplo?
É de se esperar que não.
Fonte: Carta Maior
*Jornalista, escritor e tradutor do espanhol,correspondente internacional. Vencedor por duas vezes do Prêmio Jabuti, promovido pela Câmara Brasileira do Livro. Traduziu obras dos principais autores contemporâneos da literatura hispânica: Gabriel García Márquez, Juan Rulfo, Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, entre outros. Como escritor, publicou diversos livros na área da ficção, não-ficção e juvenil, entre os quais: Memórias de um setembro na praça (1979), Quarenta dólares e outras histórias (1987), Hemingway na Espanha (1991), Coisas do mundo (1994), A palavra nunca (1997) e Quarta-feira (1998). Obras publicadas no exterior: Hemingway en España (1979), Contradanza y otras histórias (1982) e Antes del invierno (1984). Atualmente, escreve artigos e reportagens no Brasil, Espanha, México e Uruguai e em jornais como: El País, de Madrid, e Página 12, de Buenos Aires. Escreveu, também, roteiros em co-produção com a TV Espanhola e produtoras da Holanda e Inglaterra; autor do texto final do documentário: Vinícius, de Miguel Faria Jr. Seu lançamento mais recente – O massacre (2007) - é uma reportagem sobre o conflito entre a polícia do Para e os integrantes do Movimento dos Sem Terra, em Eldorado do Carajás.
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