Querida Marieta
Os atos litúrgicos e teatrais da
semana santa não lembram essencialmente nada do que Jesus ensinou e viveu.
Tradicionalmente as igrejas costumam
recordar a fantástica atitude de Jesus de levar os pés de seus doze discípulos,
de Judas, inclusive. Como fazem com
tudo, a liturgia do lava pés transformou-se em apenas emocionante
espiritualização, vazia do importante significado prático e radical do que
Jesus fez num salãozinho em Jerusalém denominado de Cenáculo, momentos antes da
crucificação.
Portanto, o contexto histórico do
lava pés original foi marcado por tensões muito fortes, cujas mentes dos
discípulos eram confusas entre o que realmente significava Jesus. A reação de
Pedro ao não aceitar inicialmente que seus pés fossem lavados e da presença de
Judas sinalizavam que algumas correntes de pensamento punham o projeto de Jesus
em risco. No ambiente externo ao Cenáculo o império romano, poderoso inimigo
dos povos sediciosos, associado com os fariseus e sacerdotes do templo, grupos
dissidentes da tradição javista (a que cria que o messias deveria libertar o
povo das humilhações que sofria), aguardavam o momento para por as mãos sobre
Jesus e seus seguidores a fim de eliminá-los.
O grupo de Jesus sofria pressões
internas e externas. Lá dentro o medo os apavorava e o vazio pelo iminente
confronto sangrento demolia suas forças. esperanças e unidade.
Mesmo assim, Jesus com uma bacia nas
mãos e com uma toalha em volta de sua cintura apanha os pés de cada e os lava.
Sou levado a imaginar a cena e o diálogo que se travou e da troca de olhares
entre Ele e cada um de seus amigos assustados. O único texto evangélico que
descreve o ato do lava pés não entra em detalhes (Evangelho de João 13). É
preciso que os entendamos na natureza de ser de Jesus. O que será que Ele disse
para o afoito e, ao mesmo tempo, assustado Pedro? Quais palavras pronunciou ao
rejeitado e incompreendido Mateus por exercer atividade econômica de terrível
marca da traição aos judeus ao cobrar impostos em favor do império romano e de
ainda desviar parte para ele? O que teria falado Jesus para Tomé, o inteligente
questionador e crítico de seu grupo? Que balbuciou a Judas enquanto
carinhosamente lhe lavava os pés? Enfim, o que Jesus disse a cada um num
contexto histórico e político tão arriscado, perigoso e violento?
A verdade é que o que Jesus realizou
no ato do lava pés é radical e não isolado de tudo o que fez. Quando terminou
de lavar os pés de seus discípulos Jesus lhes perguntou: “entendestes o que vos
fiz?” Logo a seguir Ele mesmo respondeu: “assim como eu vos fiz fazei vós uns
aos outros”.
Isto é, Marieta, o núcleo do ato de
Jesus é o que os Evangelhos denominam de serviço. Isto significa a prática em
favor do próximo, da sociedade e do mundo. O grupo de seguidores de Jesus é a
fonte de aprendizagem, de ensino e até de treinamento para a prática de servir
ao próximo.
O mesmo Jesus que lavou os pés dos
seus assustados e quase desagregados seguidores também disse: “o filho do homem
não veio para ser servido, mas dar a sua vida em resgate de todos”.
O serviço como prática transformadora
é o núcleo abandonado nas liturgias idealistas e restritas a cerimoniais sem
consequências sociais e humanas permanentes. De nada adiante lavar os pés de
pobres, de velhos, de doentes mentais, de crianças etc e continuar a apoiar ou
a se omitir diante das causas políticas dos sofrimentos desses que ganham a
atenção uma vez por ano e, assim mesmo, com apenas alguns escolhidos a dedo
para causar repercussão.
O núcleo do gesto de Jesus é o
serviço que os ditos cristãos deveríamos praticar permanentemente em nossas
relações e na luta por mudar as relações humanas, dominadas pela ideologia
contrária, a de explorar, de tirar vantagens e da concorrência que depreda e
rebaixa as vidas humanas a meras fontes de renda no maldito mercado.
Meu amigo historiador e professor Altair Freitas diz provocativamente, com razão,
que o cristianismo morreu no quarto século de nossa era “quando o
imperador romano Constantino - e depois o imperador Teodósio - cooptaram as
lideranças das comunidades cristãs para tornarem-se parceiros do poder imperial
romano. O cristianismo defensor dos pobres, oprimidos, escravos e desvalidos em
geral, tornou-se a religião dos poderosos e as palavras de Jesus
- conforme descritas nos evangelhos canônicos e apócrifos - viraram letra
morta. Repetidas pelas elites mas sob qualquer hipótese por elas praticadas. Do
império romano decadente, passando pela Idade Média, pelas Monarquias Absolutas
e avançando pelo capitalismo, o que se vê - via de regra - é uma completa
dissonância entre pregação e atos." Ainda cito o historiador Altair,
sem me incomodar, pelo contrário, me sinto desafiado com sua preciosa crítica
quando escreve em sua página no Facebook:
“ ... eu questiono o "cristianismo" de muita gente. A
dicotomia entre palavras, pensamentos e atos. Se você não pensa dessa maneira,
não tem porque se ofender. Se pensa e diz, melhor repensar o próprio
"cristianismo" e voltar aos Evangelhos! É simples assim!”
É isso, o cristianismo que travou no século IV seguindo pelos
descaminhos nascidos com Judas no século I, mesmo convivendo com Jesus,
retalhou-se em experiências esparsas de fidelidade ao lutar ao lado dos pobres
na retomada do projeto justo como mediador das relações humanas quando promoveu
o movimento wesleyano no século 18 na Inglaterra em face das enormes injustiças
da revolução industrial ao colocar-se, ainda que ingenuamente, ao lado dos
espoliados, pobres, bêbados e expulsos da sociedade capitalista, sempre injusta
e excludente desde seu nascimento. Com Dietrich
Bonhoeffer no século vinte, pastor e teólogo alemão, que optou por
enfrentar Adolfo Hitler participando de um complô para matá-lo, mal menor em
face da tragédia mundial que o nazista representava para toda a humanidade.
Pena que foi preso e assassinado duas semanas antes do fim da Segunda Guerra
Mundial. Com o padre Camilo Torres, embora seus equívocos táticos estratégicos,
optou pela luta armada contra a oligarquia colombiana associada ao imperialismo
para extorquir e miserabilizar seu povo, também morto em emboscada das forças
armadas pró-imperialistas e, finalmente, com as comunidades eclesiais de base,
que pulverizaram a América Latina, na construção de caminhos de serviço para
lavar os pés e toda a realidade dos pobres com a revolução que liberta da
opressão das elites daninhas, perversas e antipatrióticas, como diz o filósofo
e teólogo Enrique Ducel. As comunidades eclesiais de base também foram caçadas
e perseguidas pelas forças repressoras a mando da classe dominante colonial,
contando com o reforço dos papas João Paulo II e Bento XVI.
O ensino de Jesus de servir, todavia,
mesmo na adversidade de contextos brutalmente desumanos é revolucionário e
transformador em contraste ao que o neoliberalismo nos impõe, por exemplo. Essa
fachada do capitalismo em suas ações mais perversas espreme as pessoas a
viverem relações fingidas, concorrentes e egoístas. Desde os pequenos aos
grandes gestos da maioria das pessoas, congestionadas pelo mal da concorrência,
vão desde os sons em alto volume em seus automóveis, desrespeitando hospitais,
escolas, o sossego noturno etc ao roubo
praticado pelos bancos, pelos poderosos que assaltam nossa economia para
concentrá-la nas mãos privilegiadas dos 1% da população.
Lavar os pés uns dos outros é servir.
Servir é amar na prática em doação crítica permanente na construção de uma
sociedade onde tudo se partilhe entre todos, como o próprio Jesus ensinou ao
provocar o milagre da partilha dos pães e peixes.
Servir não dever ser ato reduzido a liturgias, a missas e a
cultos. Servir é radicalidade que deve envolver o tempo inteiro dos que dizem
entender o que Jesus ensinou.
Servir não deve ser também coisa só
de santinho de igreja. O serviço é ato maravilhoso humano e belo na sua mais consequente
realização.
A melhor maneira de servir e de lavar
os pés empoeirados pelos pecados capitalistas é lutar por justiça social e pela
paz entre todas as pessoas.
Servir é construir pensamentos e
ações coletivas que resgatem a essência mais bela do ser humano, que é a de ser
para os outros contra os que tiram tudo dos outros para o
proveito de poucos. Isso é luta permanente e é bom combate.
Jesus ensinou a amar através do
serviço real ao próximo. Há que resgatar essa proposta e libertá-la das mãos de
vendilhões ditos cristãos e chefes de igrejas que tudo cobram do povo, num
verdadeiro e promíscuo festival comercial da pior espécie neoliberal. Impõe-se
entender o que Jesus disse após lavar os pés de seus companheiros: “Entendestes
o que vos fiz? Assim como eu lhes lavei os pés deveis lavar uns dos outros.
Assim como eu vos amei ameis uns aos outros”. Trata-se do amor acontecido pelo
serviço que enfrenta a desumanização e resgata o sentido coletivo do projeto de
salvação, não necessariamente de igreja, mas da humanidade, sem exclusão dos
pobres e oprimidos. Essa prática radical transcende cerimônias e liturgias teatrais.
Abraços críticos e fraternos na
luta pela justiça e pela paz.
Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e
republicano.
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