Querida Talita
Foi gostoso participarmos nessa sexta-feira do ato litúrgico
lembrando o ambiente político, social e econômico da crucificação de Jesus.
Uma das misérias teológicas das comemorações da semana santa
é a expulsão do Jesus histórico, real e verdadeiro, em troca da arte emotiva e
vazia dos compromissos que causaram o julgamento, condenação e execução de
Jesus no século I na Palestina, até hoje sacrificada pelos assaltantes de suas
terras, de suas riquezas e de sua honra.
As liturgias televisivas, teatrais e as pregações exaltadas e
falsamente emotivas deixam de fora o que realmente Jesus ensinou, o que
realmente emociona.
Na quinta-feira, segundo a tradição, em Jerusalém, tensionada
por imensos conflitos internacionais, envolvendo o violento império romano e
setores judaicos representados pelos fariseus e pelos sacerdotes do templo
vendido aos interesses mesquinhos dos invasores, Jesus reúne seu grupo, ainda
muito confuso e dividido, e realiza dois atos que se perderam as verdades originais
para virarem liturgias descomprometidas humana e socialmente.
Num dos atos Jesus recupera a ceia judaica, esvaziada pelos
desvios que o projeto inicial libertador sofreu sob os impactos dos exílios e
dos massacres dos impérios dominantes e massacradores das culturas dos povos
invadidos. A ceia compartilhada por Jesus com seus irmãos apóstolos é
impressionante. Nela Jesus compartilha vida justa na medida em que na sua
ausência o que Ele celebrava simbolizaria para sempre sua entrega pela
realização do reino de justiça, para o qual ele chamou aquela dúzia de homens
com quem comungava ali. Outro significado da ceia compartilhada é que ela é
afirmação de comprometimento radical e arriscado com o projeto de Jesus ou
lugar de revelação da traição dos que se juntam, mas não se comprometem, como
aconteceu com a indicação de Judas como o traidor.
Parece-me que os significados políticos da ceia de Jesus
foram expulsos da eucaristia moderna. Nesta as pessoas comungam com total
irresponsabilidade e descompromisso, até de modo alienado com o que Jesus ensinou,
embaladas em pura superstição. Ao conversar com muita gente ouço que não sabem das
razões de tudo aquilo na missa. Sacerdotes e povo se afastaram da ceia de Jesus.
No seu lugar funciona um ritualismo mecânico e sem sentido.
Aprendi com o teólogo Arturo Paoli que a eucaristia é
partilha dos frutos da terra e de Jesus com sua missão de redimir os frutos da
terra das mãos dos egoístas e concentradores do que deveria ser de todos.
Eucaristia na mesa eucarística é o ato de sempre lembrar os
cristãos da radicalidade de Jesus com a partilha em forma de vida em todas as dimensões
sociais, sublinhando a dignidade humana. Não é possível celebrar a eucaristia e
ignorar os abandonos do próximo. Sermos inconsequentes em face das injustiças sociais é
assumirmos o papel de Judas e trairmos o projeto de Jesus.
A ceia servida e compartilhada por Jesus é o núcleo mais
profundo da revolução na construção de sociedade justa, onde as pessoas se
reconheçam como irmãs e não como inimigas entre os que roubam o sangue dos que
trabalham para gerir negócios contra os primeiros donos dos frutos da terra e
do trabalho, os trabalhadores.
A ceia de Jesus desafia os ditos cristãos contaminados pelo
capitalismo e pelo sua fisionomia mais diabólica, o neoliberalismo, a se
converterem à luta pela partilha dos bens entre todas as pessoas e de expulsar
os males consequentes dos desequilíbrios das iniquidades dos que pensam somente
em gozar a esbanjar o que deveria ser de todas as pessoas.
A eucaristia contem ao mesmo tempo o pão e o vinho,
representação de todos os bens da terra, que devem ser desfrutados por todas as
pessoas, e o próprio Jesus presente e ativo no âmago mais profundo de todos os
movimentos em favor do bem, da justiça e da paz. Jesus é a mais rica energia
dos mártires e heróis que nos dão exemplos de desprendimento e entrega à causa
que redime o próximo da sua falta de direitos e de dignidade. Matar Jesus é a
missão de Judas e de todos os que o seguem ao negar a alma eucarística.
Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz.
Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e republicano.
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