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Papa Francisco e um passado comprometido

O ataque à “esquerda anticlerical” e os silêncios do Vaticano

 

O porta-voz do Vaticano disse que as acusações contra Jorge Bergoglio provêm de uma “esquerda anticlerical” que quer “atacar a Igreja”. Federico Lombardi não fez nenhuma menção ao já provado: a trama montada pela Igreja Católica para sustentar a ditadura argentina. Uma menção, ainda que fosse de desculpas ou reconhecimento, ou o anúncio de uma audiência com as Mães da Praça de Maio, teria provado que a mudança nas esferas vaticanas começava ao menos por esse caminho. Mas a Igreja é tão hermética na hora de admitir seus pecados quanto o é para administrar o Banco do Vaticano. O artigo é de Eduardo Febbro, direto da Cidade do Vaticano.

Cidade do Vaticano - A Santa Sé partiu para a ofensiva e, pela primeira vez desde que Jorge Bergoglio foi designado papa pelos cardeais, entrou na polêmica sobre a atitude do argentino durante os anos da ditadura. O afável porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, rebateu as suspeitas que pesam sobre a igreja e o Papa Francisco a propósito de sua atuação branda durante a última ditadura argentina. Lombardi disse em uma coletiva de imprensa que essas acusações contra Bergoglio “provém de uma esquerda anticlerical” cuja meta consiste em “atacar a Igreja”. Defendendo o Papa, Lombardi estendeu seu argumento ao resto da Igreja como se já não estivesse mais do que provada a implicação da hierarquia católica argentina e vaticana no ocultamento das violações dos direitos humanos e no conluio com os crimes da junta militar.

O porta-voz da Santa Sé disse em Roma que essas acusações derivadas das investigações do jornalista Horacio Verbitsky eram levadas a cabo “por uma publicação que lança, às vezes, notícias caluniosas e difamatórias. O caráter anticlerical desta campanha e de outras acusações contra Bergoglio é notório e evidente”. Ele estava se referindo ao jornal argentino Página12.

O porta-voz do Vaticano disse ainda que as suspeitas que recaem sobre o hoje Papa Francisco datam da época em que ele era superior da Companhia de Jesus na Argentina, em 1976. Neste período foram sequestrados dois missionários jesuítas, Orlando Yorio e Francisco Jalics. Ambos trabalhavam na comunidade portenha de Bajo Flores e foram torturados e liberados cinco meses mais tarde. Horavio Verbitsky realizou várias investigações a partir das quais estabeleceu uma conexão entre Bergoglio e o desaparecimento dos jesuítas: Yorio, já falecido, e Jalics, que mora na Alemanha desde 1978. Vários testemunhos recolhidos por Verbitsky deram conta de que Yorio nunca perdoou o papel que Bergoglio teria desempenhado no episódio, inclusive com a suspeita de que ele os teria delatado.

Federico Lombardi disse que “jamais houve uma acusação verossímil contra o Papa. A justiça argentina o interrogou, mas como pessoa informada de fatos e jamais foi acusado de algo. Ele negou de forma documentada as acusações”. O porta-voz se referiu ao texto publicado ontem por um dos envolvidos, Francisco Jalics, que rompeu o silêncio por meio da página dos jesuítas alemães na internet. Em uma declaração pessoal publicada nesta página, Jalics escreve: “Não posso me pronunciar sobre o papel do padre Bergoglio naqueles eventos”. Jalics conta que, tal como mencionou o porta-voz do vaticano em sua declaração, teve “a ocasião de falar sobre esse tema com o padre Bergoglio. (...) Estou reconciliado com os acontecimentos e considero que chegou a hora de dar esse caso por encerrado”, escreve o jesuíta.

A edição digital do semanário Der Spiegel publicou, por sua vez, uma declaração do porta-voz jesuíta, Thomas Busch, que conta que, convidado pelo arcebispado de Buenos Aires, Jalics viajou a Argentina há vários anos (2000) e que, depois de falar com ele, “está em paz com Bergoglio”. Federico Lombardi argumentou que o Papa “fez muito para proteger as pessoas durante a ditadura”. Também assinalou que, uma vez nomeado arcebispo de Buenos Aires, “pediu perdão em nome da Igreja por não ter feito o suficiente durante o período da ditadura”. No entanto, o testemunho trazido por Francisco Jalics esclarece um pouco mais o jogo duplo da Igreja naqueles anos. Jalics diz que “a Junta Militar matou cerca de 30 mil pessoas em um dois anos, tanto guerrilheiros de esquerda como civis inocentes”. Os dois jesuítas sequestrados acabaram entrando nesta mistura: nem ele nem Yoro tinham contatos “nem com a junta nem com os guerrilheiros”.

No entanto, Jalics deixa claro em seu relato que “informações deliberadamente falsas” surgidas inclusive “a partir de dentro da Igreja” induziram a que se suspeitasse das supostas relações que Yoro e Jalics manteriam com os grupos armados. Essa foi a causa do sequestro. Na verdade, o testemunho de Jalics não diz grande coisa sobre a atitude de Bergoglio. Nem o desculpa, nem o acusa: só diz que se reconciliou com ele e que não pode se pronunciar sobre o papel que ele desempenhou.

O jornal Página12 não foi o único a se interessar no que Jorge Bergoglio podia ou não saber sobre fatos ocorridos a partir de 1976. A justiça francesa também colocou os olhos sobre ele. Em 2011, a magistrada francesa do Tribunal de Grande Instância de Paris, Sylvia Caillard, remeteu a Buenos Aires uma carta rogatória internacional para que o então cardeal Bergoglio prestasse depoimento na qualidade de “testemunha” no caso do assassinato do padre francês Gabriel Longueville. A advogada francesa Sopié Tono confirmou em Paris que as “autoridades argentinas nunca responderam positivamente à carta que pedia o depoimento de Bergoglio”.

O sacerdote francês trabalhava na Argentina para a Ordem das Missões da França. Na noite de 18 de julho de 1976, os padres Gabriel Longueville e Carlos Dios Murias foram sequestrados na localidade de Chamical, província de La Rioja, por civis armados que se identificaram como membros da Polícia Federal. No dia seguinte, seus corpos, com evidentes sinais de tortura, foram encontrados a 5 quilômetros de Chamical, atirados ao lado da estrada. As condições do sequestro e o assassinato de Murias e Longueville levaram outro religioso a investigar e pagar com sua vida essa intervenção. Trata-se do arcebispo de La Rioja, Monsenhor Angelelli, que realizou uma investigação para esclarecer o crime. Seu trabalho foi fatal para ele: no dia 4 de agosto de 1976, 17 dias depois do assassinato de Murias e Longueville, o Monsenhor Enrique Angelelli morreu em circunstâncias suspeitas. A primeira versão oficial estabeleceu que Angelelli faleceu em um acidente automobilístico. No entanto, as provas levantadas mais tarde confirmaram que se tratou de um atentado.

No dia da sua morte, o bispo de La Rioja regressava de Chamical, onde havia celebrado uma missa e pronunciado a homilia na qual denunciou o assassinato dos dois padres. No veículo que conduzia Angelelli havia uma testemunha, o padre Arturo Pinto, e um elemento central: um portfolio que continha as provas recolhidas por Angelelli sobre o assassinato de Murias e Longueville. Pinto contou que, assim que deixaram Chamical, outro automóvel começou a persegui-los. O bispo se deu conta, acelerou, mas à altura de Punta de los Llanos surgiu outro carro que o fechou até fazer tombar a caminhonete. O corpo de Angelelli foi encontrado com a nuca destroçada a golpes.

Em 2011, quando foi enviada a carta rogatória, a advogada Sophie Thonon julgou que o depoimento de Bergoglio como “testemunha” era necessário para que o então arcebispo de Buenos Aires fornecesse informações sobre a possível existência de arquivos ligados a este caso. Sophie Thonon disse que “seguramente este Papa não é uma grande figura da defesa dos direitos humanos. Ao contrário, pesa sobre ele a suspeita de não ter denunciado os crimes da ditadura, de não ter cobrado esses crimes e, por conseguinte, de ter encoberto esses atos com seu silêncio”. A instrução do caso do padre Longueville segue ativa na França, mas pode dar em nada devido às condenações já proferidas na Argentina contra os acusados pelo assassinato do religioso. Neste sentido, Sophie Thonon considerou que “a justiça argentina está fazendo um trabalho excepcional sobre os crimes cometidos na Argentina durante a ditadura”.

Federico Lombardi se referiu nesta sexta à questão do Papa Francisco sem fazer a menor menção ao já provado: a trama montada pela Igreja para sustentar a ditadura argentina. Uma menção, ainda que fosse de desculpas ou reconhecimento, ou o anúncio de alguma futura audiência com as Mães da Praça de Maio ou com os defensores dos Direitos Humanos, teria sido, sem dúvida, mais nobre e acertado: teria provado que a mudança nas esferas vaticanas começava ao menos por esse caminho. Mas a Igreja é tão hermética na hora de admitir seus pecados quanto o é para administrar os seus fundos através do Banco do Vaticano.


Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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