Querido amigo Prof. Jorge
Vivemos a semana santa de 2013. Mais uma vez mergulho num estado
especial de reflexão, espiritualidade e reencontro. Minha alma se deixa invadir
por um misto de tristeza e de alegria. Para mim a sexta-feira é muito pesada,
densa de pensamentos. Geralmente me deparo com esse estado na própria natureza:
parece que o universo chora a grande morte acontecida sob golpes de traições,
negações, vinganças, mentiras, hipocrisias, vacilos, crucificação, abandono,
tormentos e confusões vivenciadas por Jesus de Nazaré, que na cruz morreu esvaído
não só do sangue vertido, mas da vida endereçada a mudar as pessoas e o mundo.
Como disse em comentário ao site Brasil 247, que reproduzi neste blog (aqui), fui ao velório do ex
governador de Goiás, Mauro Borges. No salão do Palácio das Esmeraldas revivi um
pouco do ambiente que levou Jesus à cruz: vi algumas mulheres e homens negros
pobres, muito envelhecidos, sentados à beira do caixão e um enorme número de
pessoas que transitava pelo ambiente como se participasse de uma festa. Ao
encontrarem-se abraçavam-se com enormes e barulhentas batidas nas costas
(gostaria de pesquisar as razões do porque gente metida a rica gosta de bater
forte e ruidosamente nas costas uns dos outros). Tive a impressão de que as
únicas pessoas que foram ao velório eram os pobres negros que ali estavam tristes
e que conviviam há longo tempo com Mauro Borges. Os outros foram para aparecer
e cumprir agenda social. Até que o clima se esclareceu intensamente com a
chegada do amante de holofotes, Marconi Perillo, que por incompetência dos
progressistas daqui ainda (des) governa esse Estado. A maioria das mariposas
que foi ao Palácio das Esmeraldas para se mostrar correu em direção a Marconi e,
como papagaio de pirata, colou-se ao lado dele para ser captada pelas câmeras
de TV da mídia poderosa, que se alimenta dos impostos do povo de Goiás, que a
corrupção paga para blindar os vampiros que se alimentam do sangue de quem produz
e de quem trabalha neste Estado. Postei-me ao lado e entre os negros e pobres
que se mantinham distantes da festança e show no velório. Quando Marconi, que
muito combateu Mauro Borges no passado e o levou à derrota como candidato ao
governo do Estado de Goiás, iniciou espetáculo macabro de aperto de mãos dos
presentes ouvi de alguns negros, pelo visto trabalhadores, que se Marconi
lhes apertasse as mãos eles as lavariam e tomariam banho de soda cáustica para
se livrar da sujeira desse cara (assim disseram). Outro comentou que sentia um
cheiro de podre no ar quando Marconi entrou e foi cercado pelos abutres. Eu, pensando
nas pessoas que represento e conhecedor de meu temperamento que não me
permitiria calar em face de tanto cinismo ao ver o homem acusado de tanta
corrupção, de saber de que ele calou a CPI composta de fracos na Assembleia
Legislativa deste Estado, de que mandou bater e quase matar jovens que
protestavam inocentemente em Itumbiara – Go contra seu governo corrupto etc,
para não acolher suas mãos ensanguentadas e sujas, me afastei. Em casa assisti
pelas Tvs as matérias patéticas, pobres, frias e distorcidas sobre a história
de Mauro Borges, de seu projeto de governo inspirado pelo seu pai Pedro
Ludovico e por Getúlio Vargas denominado “a marcha para o Oeste”, distorcido pelos
proprietários rurais e pela mídia atrasados
deste Estado.
Em plena sexta-feira santa, já em espírito de meditação e reflexão, encontrei
mais material para pensar em três aspectos vivenciados por Jesus e ainda
presentes como arquétipos existenciais da humanidade, a marcar nossa marcha ao
futuro nesse processo abrangente que se chama páscoa.
Judas
participa de nosso ser, mais do que imaginamos
As pesquisas bíblicas revelam que Judas, o Iscariotes, era um dos
integrantes mais cultos e preparados do grupo de Jesus. Conhecia muito bem os seguimentos e seus movimentos na política e na religiosidade palestina dos tempos do
ministério de Jesus. Como qualquer ser humano, Judas não era virgem ideológica e
politicamente. Sua visão de mundo o colocaria como seguidor de um projeto de
sedição da Palestina contra a dominação do império romano. Rapidamente percebeu
que Jesus servia a esse seu sonho e passou a segui-lo. Na caminhada Judas se
inconformou com a mensagem pacífica de Jesus. Isolado, buscou setores mais
avançados do farisaísmo de seu tempo. Estes fatalmente o empurraram a uma
aliança com espectros conservadores do farisaísmo e dos sacerdotes do templo.
Resultado: deu tudo errado. Talvez Judas aspirasse pressionar Jesus à luta
armada, a unir-se a outros grupos mais aguerridos quando foi comprado pela
corrupção dominante na religião e na política aliançadas com os romanos, sempre
prontos a derrotar a patadas de cavalo, a golpes de espada e a morte pela crucificação
todos os que se levantavam contra sua dominação, a entregar o mestre libertador
à sede de sangue que os opressores tinham ao buscá-lo para matar.
O suicídio de Judas, o ato de matar-se a si mesmo, dá material a que se
pense que ele se dividiu ao meio: uma de suas dimensões lutava pelo melhor que
se apoiava em Jesus e a outra o sugou na articulação diabólica com o templo e
com a política dos assassinos e opressores. Enforcou-se odiado pelos
evangelistas que não o perdoaram pela traição e sob o silêncio de Jesus, tantas
vezes levado a falar pelas comunidades primitivas que escreveram os textos
evangélicos. Jesus após a ressurreição nada diz sobre a traição e morte de
Judas. Todavia, sua traição e morte insistem em falar, mas permanecem sem
intérpretes na história e em nós.
Nesta semana santa penso no significado de Judas e me pergunto se todos
nós não temos muito dele em nossas escolhas. A traição é indício de que dois caminhos dividem a consciência do traidor, manipulando-o teatralmente. A partir daí o que traí desgasta-se para os dois lados, sendo que um deles é mais forte e mobiliza mais seu pensamento e energia. A realidade é imponente e exige opções, forçando a que opte por uma das alternativas. A situação é tão dolorosa ao ponto de obrigar a pessoa a esforços de genialidade para unir os dois caminhos nela mesma em favor daquele que ela julga o justo. Nem sempre escolhemos o melhor caminho a seguir. De um lado,
abrem-se as gargantas dos horrores das articulações de porão, sujas, de consciências
amortecidas, de mãos tintas de sangue e de atentados contra os interesses
coletivos. Isso é inegável. Todos os dias e todas as horas nos deparamos com
os entulhos golpistas e venenosas nas relações sociais e na vida. Personagens de horror, muitas vezes de
sorrisos facilmente hipócritas e de mãos falsamente estendidas, nos convidam a
trair e a entregar à morte nossas mais santas e puras buscas. Quantos Judas demonstraram ser pessoas tão boas e puras em suas intenções
amorosas e de causas a alegrar os anjos, que sucumbiram pelos mesmos caminhos
do primeiro exemplar e padroeiro da traição. Quantas pessoas lutaram pela justiça e pela
paz mas que se renderam aos encantos das sereias estendidas esbeltamente no seu afã de seduzir e de desviar os revolucionários de suas missões. Quantos
apaixonados e apaixonadas de início de relacionamento que se desvieram dos
sonhos iniciais para se tornarem algozes e traidores de pessoas que tanto
amaram. Quantos seguiram o povo e por ele até se sacrificaram, por ele fizeram
discursos incandescentes, mas que na hora H venderam tudo ao diabo. Frei
Betto conta um episódio iluminador. Um amigo seu tornou-se alto funcionário do
governo Federal. Quando militante de base defendia os pobres, vestia-se como um
deles, assessorava-os na luta libertária até que foi guindado a alto cargo
federal. Numa certa oportunidade o dito amigo apareceu em uma assembleia da
pastoral popular assessorada por Frei Betto. Seu discurso era outro. Dizia: que
você quer com essa “gente” que não levará a nada? Sua roupa não era mais a de
um lutador: trajava terno, gravata, camisa, cinta e sapatos caríssimos. Seu ar
era de desdém para com Frei Betto e com o povo que ali se preparava para a luta.
Betto sentiu asco do pobre infeliz em estado de putrefação burguesa. Eu diria,
em estado de “judascização”. O infeliz resvalou e caiu nas malhas da traição ao
vender a alma ao uso do poder em troca de interesses mesquinhos. Judas funciona como
válvula permanente na função de roubar a energia criadora e libertadora. É
preciso que sejamos vigilantes e atentos às armadilhas sempre prontas a
nos sabotar. Porém, em outros casos, Judas funciona como comissão de frente nos
comportamentos traidores. Suas atitudes
não guardam espaço algum para o Jesus libertador, amoroso na luta pelos outros.
Pelo contrário, raramente se dão conta de que fidelidade, lealdade, compromisso
com alianças são belezas próprias dos que se deixam orientar pelo projeto de
Jesus de amor ao próximo.
Pedro
nosso, vacilante de sempre
Outro personagem do cenário da semana santa é o apóstolo Pedro. Sua
origem como fariseu da corrente zelote é fascinante. Seu grupo defendia a
Palestina através da guerrilha. Opunha-se tenazmente à invasão do império
romano e à gentilização da religião judaica. Seguidamente aliava-se ao grupo de
Judas na luta através dos punhais envenenados para matar os soldados romanos,
sustentadores militares da opressão estrangeira. Pedro era também trabalhador.
Na condição de pescador do lago da Galiléia entendia muito bem das agruras e
sonhos de sua categoria e de seu povo. Foi ele um dos primeiros que Jesus contemplou com o “vem
e segue-me”. Na Galiléia os pescadores eram o maior seguimento de
trabalhadores. Conseguir seguidores naquele meio era fundamental. Pedro, ao
atender o convite de Jesus, configurou-se como suporte importante para a
consolidação da proposta de Jesus. Contudo, as tensões enfrentadas pelo grupo de
Jesus eram imensas. Os fariseus e sacerdotes conservadores se sentiram deixados
de lado pelo povo que optou em massa seguir Jesus. O povo palestino era
extremamente pobre e obrigado a dar pesados impostos para sustentar o poderio
militar e imperial de Roma. Jesus trouxe-lhes o sonho de um novo reino, onde
todos seriam reconhecidos como irmãos, sem discriminação, sem desprezo, sem
violência e graciosamente. Este sonho tomou conta das massas que se sentiam
arrebatadas por tanto apelo de justiça e de paz. Deus aproximava-se, como ensinava Jesus, das
mulheres imensamente discriminadas, dos leprosos excluídos pelo sistema
dominante; das crianças que, segundo ensinavam os gregos, não tinham alma; dos
estrangeiros como os samaritanos que, segundo ensinavam os conservadores, não
valiam nada; das prostitutas, mulheres sem opção de vida, eram exploradas pelos
que não se sentiam acusados de adultério e de prostituição; dos pescadores
sofridos em virtude do trabalho árduo e mal recompensado; dos publicanos
ignorantes que trabalhavam na cobrança de impostos para sustentar os inimigos; enfim de todos, sem discriminação, diferentemente do que faziam os religiosos e vendilhões de
consciências. Nesse burburinho, como sempre, as pressões invadiam a todos e
alguns se sentiam confusos no grupo apostólico. Pedro simbolizou-se como
vacilão. Na última hora chegou a negar que conhecia Jesus e que o seguia.
Parece que a culpa das vacilações e as próprias vacilações acompanharam Pedro
até o fim de sua vida.
Nessa semana penso em Pedro como arquétipo das indecisões, dos vacilos e
das fraquezas morais. A diferença entre Pedro e Judas é que este entregou Jesus aos
inimigos e com um beijo representou a venda do mestre aos que o maltratariam e
matariam. Judas vendeu suas informações no ato de trair. Vendeu a intimidade que
tinha com seu amigo e líder. Enquanto Pedro negou-o sem defendê-lo como
prometera antes. Pedro alardeou várias vezes que defenderia Jesus com sua
espada e quando a usou o fez equivocadamente ao atorar uma das orelhas de um
soldado romano. No momento mais crucial Pedro se negou a lutar por e com Jesus.
Pedro era vacilão. Parece que caráter indeciso
e fraco se diferencia de quem trai. Mas os resultados são os mesmos. Para o
vacilão, apesar do prejuízo que causa, há perdão e possibilidade de recuperação,
como aconteceu a Pedro, que se tornou chefe da comunidade cristã primitiva de
Jerusalém e posteriormente de Roma, onde morreu.
Pedro é um arquétipo que incide sobre as indecisões de muita gente. Não
conhecemos pessoas que prometem coisas, que sinceramente se dispõem a mundos e
fundos mas que na hora “do vamos ver” sempre conseguem pretextos para não
participar, para resvalar fora, com desculpas para não caminhar juntos?
Provavelmente nós mesmos nos sintamos assim em determinados momentos.
Indecisões e vacilos acompanham pessoas com esse comportamento em todos nos níveis
de relacionamento: nas relações íntimas, na luta pela justiça e pela paz, na
luta política, na educação, em tudo. Volta em meia nos deparamos com pessoas
com o complexo “petrino” arrependidas por perderem oportunidades que jamais
voltarão, ou por escutarem excessivamente os outros que falam sem saber, ou por
serem moralistas e preconceituosas. Pois
é, não raro as vaciladas ajudam a abortar projetos do amor, da justiça e da paz
e encaminham a causa para a cruz e para a morte.
Pedro celebra a páscoa, Judas não
Até que enfim chega a manhã da páscoa, a manhã da libertação. Esta é resultado
do processo libertador que passou pelas lutas anteriores, como traição, vacilos covardes e pela crucificação
com todo o seu horror. Com o raiar do sol luz e trevas se misturam até que a
luz se impõe absoluta. Com a páscoa se misturam o medo, a insegurança, a morte,
as dúvidas, as discriminações e a falta de fé no projeto ensinado por Jesus.
As idas e correrias das mulheres e discípulos após a notícia da ressurreição é exemplificativo da confusão ainda vivenciada no processo pascal de Jesus. Porém, como acontece em todas as auroras, a páscoa se impõe sobre o Pedro
acovardado, sobre a discriminação das mulheres, sobre os caminhantes que tudo
abandonaram descrentes para se dedicar às suas vidinhas na pescaria porque,
para eles, a proposta de Jesus já era. Muitos giram a vida inteira entorno de coisas pequenas e sem maior significado para a humanidade, empobrecidos na vida.
A páscoa é poderoso arquétipo. É força que nasce da ressurreição de
Jesus para superar os riscos de abandonarmos o projeto por ele proposto para nos
unirmos aos dos traidores, aos porões dos que a tudo vendem para preservar seus
interesses. A páscoa nasce na ressurreição de Jesus que superou a covardia de
Pedro para recuperar a beleza potencial de sua fidelidade quase perdida pela
confusão, sob os impactos das pressões insuportáveis. A páscoa nasce da
ressurreição que se eleva da derrota imposta pela cruz usada pela opressão para
matar a insurreição do amor, da justiça e da paz.
Lamentavelmente quem se deixar sugar e suicidar pelo arquétipo de Judas
não celebrará a páscoa da vida e da liberdade. Porém, quem superar o arquétipo
de Pedro que representa promessas não cumpridas, covardia na hora H, vacilos
nos compromissos de amor ao próximo, da luta pela justiça e pela paz pode
celebrar a páscoa de Jesus, pode repartir pães e peixes, pode reconhecê-lo na
luta e na caminhada libertadora. A páscoa é perdão e superação de erros e
vacilos, desde que sejamos honestos como Pedro o foi. O perdão e a superação
que a páscoa propicia é o passaporte para a retomada da vida e da missão da justiça e da paz. Sempre é possível...
Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz.
Dom Orvandil: bispo cabno, farrapo e republicano.
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