Supremo
político
No Estado Novo esta mesma corte [o STF] autorizou a entrega de uma judia comunista para morrer nas Câmaras de Gás de Hitler. Esteve dentro da estrita legalidade de uma Ditadura. Em 1988 recebemos um ordenamento jurídico resultante da luta contra o terrorismo de Estado que imperou no Brasil depois de 1964. A condenação de José Dirceu mostra que o consenso de 1988 mudou. Doravante, empresários, políticos e lideres de movimentos sociais terão grande dificuldade de se defender no STF. A não ser que o julgamento tenha sido de exceção! O artigo é de Lincoln Secco (o comentário é de Paulo Henrique Amorim no Conversa Afiada).
publicado em 23 de outubro de 2012
por Lincoln Secco*, especial para o Viomundo
Conta-nos George Duby que no século XII o cavaleiro
Guilherme Marechal descobriu uma jovem dama e um monge em fuga. Ao saber
que se dirigiam a uma cidade para empregar seu dinheiro a juros, ele ordenou a
seu escudeiro que lhes retirassem o dinheiro. Para ele aquilo não era roubo!
Ele não tocou na jovem, não impediu que continuassem e nem lhes tomou a
bagagem. Nem mesmo quis ficar com o dinheiro tomado pelo escudeiro. É que para
a moral da cavalaria o metal era vil, a acumulação desonrada e a usura um
pecado.
Ninguém nos dias de hoje concordaria com aquele
“Direito Medieval”. Todo o Direito corresponde ao seu tempo e à leitura
política que predomina numa sociedade.
No caso do Supremo Tribunal Federal, a sua natureza
política se torna quase transparente. É que os juízes do STF não fazem
concurso, eles são indicados. A Constituição garante ao Presidente da República
e à maioria que ele constitui no Senado Federal, o poder de interferir na sua
composição.
Dessa forma é dever constitucional do presidente
nomear pessoas que estejam de acordo com a correlação de forças políticas que a
população livremente estabeleceu pelo voto. Quando Fernando Henrique Cardoso
foi eleito, ele nomeou juízes que estavam afinados com o seu projeto liberal de
privatizações. Nomeou pessoas que deveriam criar o ordenamento jurídico dentro
do qual ele ergueu o modelo econômico escolhido pelo povo. Caberia aos juízes inviabilizar
questionamentos que duvidassem das privatizações, por exemplo.
Em 2002 o povo escolheu um novo modelo de
desenvolvimento oposto ao anterior e era esperado do presidente que nomeasse
para o STF juízes que calçariam o sua opção pelo social com uma segurança
jurídica mínima que impedisse ações contra sua política de cotas ou seus
programas de transferência de renda, por exemplo. Mas, ao contrário de
FHC, Lula seguiu uma interpretação errônea do que seria a República.
Ocorre que se o STF não é politizado pelo
presidente ele o é pela oposição. É que o Direito não é só um conjunto de fatos
ou normas, como rezam os positivistas, mas a expressão de uma relação de
poder. Se um lado hesita em exercê-lo o outro o fará. Nada disso
atenta contra a Democracia. Esta é apenas a forma de um domínio
encoberto pelo consenso da sociedade. A violação do direito ocorre se
um dos lados usa a força e se põe fora da legalidade.
Até ontem, o consenso jurídico era o de que na
dúvida prevalecia a absolvição do réu. Cabia ao acusador fornecer a prova, e
não o contrário. Provas não podiam ser substituídas pela crença espírita de que
uma pessoa devia necessariamente conhecer determinado fato. Todo
cidadão tinha o direito de ser julgado em mais de uma instância.
No século XIX havia escravos que iam às barras do
tribunal para requerer a liberdade alegando que teriam ingressado cativos no
Brasil depois da proibição do tráfico. E quando perdiam num Tribunal da
Relação, podiam recorrer até a última instância, embora a nossa mais
alta corte defendesse a escravidão.
No Estado Novo esta mesma corte autorizou a
entrega de uma judia comunista para morrer nas Câmaras de Gás de Hitler. Esteve
dentro da estrita legalidade de uma Ditadura. Em 1988 recebemos um ordenamento
jurídico resultante da luta contra o terrorismo de Estado que imperou no Brasil
depois de 1964.
A condenação de José Dirceu mostra que o consenso
de 1988 mudou. Doravante, empresários, políticos e lideres de movimentos
sociais terão grande dificuldade de se defender no STF.
A não ser que o julgamento tenha sido de
exceção!
Neste caso, tudo voltará a ser como antes. Mas
então a ilusão que a esquerda acalentou na democracia será posta em causa e ela
poderá se voltar aos exemplos tão temidos pela oposição, como a Argentina, a
Bolívia, o Equador e a Venezuela.
*Lincoln Secco é professor do Departamento de
História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seus comentários serão publicados. Eles contribuem com o debate e ajudam a crescer. Evitaremos apenas ofensas à honra e o desrespeito.