Caro Ernesto
Sei do quanto gostas da terra e da produção agrícola;
conheço tuas enormes dificuldades na condição de pequeno agricultor. Faltam
insumos, mão de obra, equipamentos, investimentos etc. Tua vida aí significa
dolorida contradição que agride o mais profundo do ser do trabalhador do campo.
É dura e injusta a vida no campo. Representas, meu irmão Ernesto, o sofrimento
incalculável de uma estatística enorme de pessoas por todo o Brasil. Do campo
veio, nas décadas de 50 em diante, a maioria dos habitantes das cidades
brasileiras, empurrados para fora de suas terras pelos tubarões e pelos
grileiros injustos, cercados de jagunços bandidos que destruíam pequenas
propriedades e matavam os que resistissem, fato que continua acontecendo até
hoje. Gilmar Mendes que o diga. Nos setores urbanos milhões perderam os pedaços
vendo os filhos jogados nas drogas, nos desempregos, no alcoolismo e no ócio
infernal da falta de perspectivas e de qualificação para o trabalho. Porém, os
30 ou 20% que permaneceram nos campos, nas duras lidas agrícolas, não
melhoraram em nada suas vidas e condições de trabalho.
Sou originário do mundo agrícola, como sabes, meu
irmão Ernesto. Vi verdadeiras tragédias nas lavouras, campos e rios do interior
do Estado. Faltaram educação formal para as crianças, adolescentes e jovens. A
ausência de infra-estrutura para o transporte da produção sempre foi assustadora.
Lembro dos atoladoras em se transformavam as precárias estradas que ligavam os
campos com a cidade. Os trabalhadores rurais envelheciam mais cedo por falta de
assistência à saúde em face da dureza da vida. A rudeza de comportamento e relacionamentos
pessoais transformava nossos irmãos trabalhadores agrícolas em presas fáceis da
criminalidade e do ódio. Quando alguns
escapavam para a cidade e conseguiam se entregar aos estudos provavam o quanto
as mulheres e homens rurais são capazes de crescer e se humanizar, basta que lhes
respeite os direitos de estudar, crescer e contribuir com a sociedade.
De sorte que o grande e respeitado líder Pedro
Stedile tem razão ao se indignar com o governo Dilma como se indignou com Lula.
Somente quem vive cercado de
privilégios, refrescado com aparelhos de ar condicionado nos entapetados
gabinetes dos Ministérios em Brasília, contando com viagens gratuitas por todo
o País e pelo mundo inteiro, não consegue compreender solidaria e politicamente
os problemas do campo, onde sofregamente trabalham, vivem e morrem anonimamente
nossos irmãos ao produzir nossos alimentos, boa parte deles transformados em
moedas nas contas dos poderosos que especulam com nossa fome.
Já escrevi aqui que a Presidenta Dilma não avança na
necessária reforma agrária. A insensibilidade de seu governo para com a
agricultura e a complexidade de problemas na vida rural é gritante. Porém, os
poderosos continuam a concentrar terras nas mãos de apenas 1% de privilegiados
brasileiros, que usam as terras para especulação e lazer, sem compaixão do País
e suas famílias que precisam de alimentos de mais qualidade e de menor preço.
Os poderosos que “usam” (!) a mão de obra barata dos trabalhadores rurais para
plantar desviam a produção agrícola para o acúmulo de riquezas e até para
internacionalizar as terras e o consumo de produtos delas demandados e nelas
aplicados, como os insumos, os adubos, os equipamentos, boa parte comprados das
multinacionais.
Pedro Stedile, companheiro presidente do Movimento
dos Sem Terras, faz grave advertência à Presidenta, denunciando os gritantes
problemas nas terras. Não apenas denuncia, mas anuncia soluções e propõe
encaminhamentos, fornecendo competentemente à Presidenta enorme cabedal de
informações com as soluções praticamente prontas. Portanto, de um lado ele
denuncia as barbaridades geradas pela falta de compromisso e de coragem para
empreender a reforma agrária e, por outro, anuncia as soluções, praticamente
mastigadas. Stedilie não faz a demagogia dos que jogam pedras nas vidraças e
depois correm. Ele põe um dedo nas feridas e abre as mãos para ajudar a curar.
Por isso temos que apoiá-lo. Ele é sério.
Vale apena conferir o texto de Pedro Stedile abaixo,
um verdadeiro documento profético escrito à Presidenta Dilma através da Revista
Carta Capital e reproduzido pelo site Brasil 247.
É bom que o governo Dilma lembre que o MST e outros
seguimentos de mobilização rural apoiaram Lula no momento mais crítico quando a
direita golpista armava o golpe para derrubá-lo. Depois empenharam-se para
reelegê-lo. Apoiaram a candidata Dilma sob a justificativa de que José Serra significava
o aumento da violência nos campos e o emperramento da reforma agrária. Até
agora os Sem Terras apóiam o governo Dilma, num maravilhoso testemunho de
paciência. Ao firmar que Dilma está cega para os problemas dos campos, Stedile
chama a atenção do governo para o problema e aponta a solução, com toda a
razão. Não é bom testar os nervos e
serenidade dos trabalhadores nem trair-lhes a confiança. Eles são sagrados por
lidar com o solo e com os alimentos. Merecem respeito e justiça.
Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e republicano.
Abraços críticos e fraternos.
_________________________________________________________________________________Conflito permanente
A sociedade brasileira enfrenta no meio rural
problemas de natureza distintos que precisam de soluções diferenciadas. Temos
problemas graves e emergenciais que precisam de medidas urgentes. Há cerca de
150 mil famílias de trabalhadores sem-terra vivendo debaixo de lonas pretas,
acampadas, lutando pelo direito que está na Constituição de ter terra para
trabalhar. Para esse problema, o governo precisa fazer um verdadeiro mutirão
entre os diversos organismos e assentar as famílias nas terras que existem, em
abundância, em todo o País. Lembre-se de que o Brasil utiliza para a
agricultura apenas 10% de sua área total.
Há no Nordeste mais de 200 mil hectares sendo
preparados em projetos de irrigação, com milhões de recursos públicos, que o
governo oferece apenas aos empresários do Sul para produzirem para exportação.
Ora, a presidenta comprometeu-se durante o Fórum Social Mundial (FSM) de Porto
alegre, em 25 de janeiro de 2012, que daria prioridade ao assentamento dos
sem-terra nesses projetos. Só aí seria possível colocar mais de 100 mil
famílias em 2 hectares irrigados por família.
Temos mais de 4 milhões de famílias pobres do
campo que estão recebendo o Bolsa Família para não passar fome. Isso é
necessário, mas é paliativo e deveria ser temporário. A única forma de tirá-las
da pobreza ó viabilizar trabalho na agricultura e adjacências, que um amplo
programa de reforma agrária poderia resolver. Pois nem as cidades, nem o
agronegócio darão emprego a essas pessoas.
Temos milhões de trabalhadores rurais,
assalariados, expostos a todo tipo de exploração, desde trabalho semiescravo
até exposição inadequada aos venenos que o patrão manda passar, que exige
intervenção do governo para criar condições adequadas de trabalho, renda e
vida. Garantindo inclusive a liberdade de organização sindical.
Há na sociedade brasileira uma estrutura de
propriedade da terra, de produção e de renda no meio rural hegemonizada do
modelo do agronegócio que está criando problemas estruturais gravíssimos para o
futuro. Vejamos: 85% de todas as melhores terras do Brasil são utilizadas
apenas para soja/ milho; pasto, e cana-de-açúcar. Apenas 10% dos fazendeiros
que possuem áreas acima de 200 hectares controlam 85% de todo o valor da
produção agropecuária, destinando-a, sem nenhum valor agregado, para a
exportação. O agronegócio reprimarizou a economia brasileira. Somos produtores
de matérias-primas, vendidas e apropriadas por apenas 50 empresas
transnacionais que controlam os preços, a taxa de lucro e o mercado mundial. Se
os fazendeiros tivessem consciência de classe, se dariam conta de que também
são marionetes das empresas transnacionais.
A matriz produtiva imposta pelo modelo do
agronegócio é socialmente injusta, pois ela desemprega cada vez mais pessoas a
cada ano, substituindo-as pelas máquinas e venenos. Ela é economicamente
inviável, pois depende da importação, anotem, todos os anos, de 23 milhões de
toneladas (s/ç) de fertilizantes químicos que vêm da China, Uzbequistão,
Ucrânia etc. Está totalmente dependente do capital financeiro que precisa todo
ano repassar: 120 bilhões de reais para que possa plantar. E subordinada aos
grupos estrangeiros que controlam as sementes, os insumos agrícolas, os preços,
o mercado e ficam com a maior parte do lucro da produção agrícola. Essa
dependência gera distorções de todo tipo: em 2012 faltou milho no Nordeste e
aos avicultores, mas a Cargill, que controla o mercado, exportou 2 milhões de
toneladas de milho brasileiro para os Estados Unidos. E o governo deve ter lido
nos jornais, como eu... Por outro lado, importamos feijão-preto da China, para
manter nossos hábitos alimentares.
Esse modelo é insustentável para o meio ambiente,
pois pratica a monocultura e destrói toda a biodiversidade existente na
natureza, usando agrotóxicos de forma exagerada. E isso desequilibra o
ecossistema, envenena o solo, as águas, a chuva e os alimentos. O resultado é
que o Brasil responde por apenas 5% da produção agrícola mundial, mas consome
20% de todos os venenos do mundo. C) Instituto Nacional do Câncer (Inca)
revelou que a cada ano surgem 400 mil novos casos de câncer, a maior parte
originária de alimentos contaminados pelos agrotóxicos. E 40% deles irão a
óbito. Esse é o pedágio que o agronegócio das multinacionais está cobrando de
todos os brasileiros! E atenção: o câncer pode atingir a qualquer pessoa,
independentemente de seu cargo e conta bancária.
Uma política de reforma agrária não é apenas a
simples distribuição de terras para os pobres. Isso pode ser feito de forma
emergencial para resolver problemas sociais localizados. Embora nem por isso o
governo se interesse. No atual estágio do capitalismo, reforma agrária é a
construção de um novo modelo de produção na agricultura brasileira. Que comece
pela necessária democratização da propriedade da terra e que reorganize a
produção agrícola cm outros parâmetros. Em agosto de 2012, reunimos os 33
movimentos sociais que atuam no campo, desde a Contag até o movimento dos
pescadores, quilombo-las, MST etc., e construímos uma plataforma unitária de propostas
de mudanças. E preciso que a agricultura seja reorganizada para produzir, em
primeiro lugar, alimentos sadios para o mercado interno e para toda a população
brasileira. E isso é necessário e possível, criando políticas públicas que
garantam o estímulo a uma agricultura diversificada em cada bioma, produzindo
com técnicas de agroecologia. E o governo precisa garantir a compra dessa
produção por meio da Conab.
A Conab precisa ser transformada na grande
empresa pública de abastecimento, que garante o mercado aos pequenos
agricultores e entregue no mercado interno a preços controlados. Hoje já temos
programas embrionários como o PAA (programa de compra antecipada) e a
obrigatoriedade de 30% da merenda escolar ser comprada de agricultores locais.
Mas isso atinge apenas 300 mil agricultores e está longe dos 4 milhões
existentes.
O governo precisa colocar muito mais recursos em
pesquisa agropecuária para alimentos e não apenas servir às multinacionais,
como a Embrapa está fazendo, em que apenas 10% dos recursos de pesquisa são
para alimentos da agricultura familiar. Criar um grande programa de
investimento em tecnologias alternativas, de mecanização agrícola para pequenas
unidades e de pequenas agroindústrias no Ministério de Ciência e Tecnologia.
Criar um grande programa de implantação de
pequenas e médias agroindústrias na forma de cooperativas, para que os pequenos
agricultores, em todas as comunidades e municípios do Brasil, possam ter suas
agroindústrias, agregando valor e criando mercado aos produtos locais. O BNDES,
em vez de seguir financiando as grandes empresas com projetos bilionários e
concentradores de renda, deveria criar um grande programa de pequenas e médias
agroindústrias para todos os municípios brasileiros.
Já apresentamos também ao governo propostas
concretas para um programa efetivo de fomento à agroecologia e um programa
nacional de reflorestamento das áreas degradadas, montanhas e beira de rios nas
pequenas unidades de produção, sob controle das mulheres camponesas. Seria um
programa barato e ajudaria a resolver os problemas das famílias e da sociedade
brasileira para o reequilíbrio do meio ambiente.Infelizmente, não há motivação no governo para
tratar seriamente esses temas. Por um lado, estão cegos pelo sucesso burro das
exportações do agronegócio, que não tem nada a ver com projeto de país, e, por
outro lado, há um contingente de técnicos bajuladores que cercam os ministros,
sem experiência da vida real, que apenas analisam sob o viés eleitoral ou se é
caro ou barato... Ultimamente, inventaram até que seria muito caro assentar
famílias, que é necessário primeiro resolver os problemas dos que já têm terra,
e os sem-terra que esperem. Esperar o quê? O Bolsa Família, o trabalho
doméstico, migrar para São Paulo?
Presidenta Dilma, como a senhora lê a Carta Capital,
espero que leia este artigo, porque dificilmente algum puxa-saco que a cerca o
colocaria no clipping do dia.
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