Lula e o
exorcismo que vem aí
2 de novembro de 2012
Uma capa recente do Estadão resumiu de forma
enxuta os caminhos pelos quais a oposição brasileira pode enveredar para tentar
interromper aos 12 anos o domínio da coalizão encabeçada pelo PT no governo
federal.
De um lado, o ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso sugeria renovação do discurso do PSDB.
De outro, um novo depoimento de Marcos Valério no qual ele teria citado o nome do ex-presidente Lula:
Valério foi espontaneamente a Brasília em setembro
acompanhado de seu advogado Marcelo Leonardo. No novo relato, citou os nomes de
Lula e do ex-ministro Antonio Palocci, falou sobre movimentações de dinheiro no
exterior e afirmou ter dados sobre o assassinato do ex-prefeito de Santo André
Celso Daniel.
Curiosamente, no dia seguinte acompanhei de perto
uma conversa entre quatro senhores de meia idade em São Paulo, a capital
brasileira do antipetismo, na qual um deles argumentou que Fernando Haddad, do
PT, foi eleito novo prefeito da cidade por causa do maior programa de compra de
votos já havido na República, o Bolsa Família. Provavelmente leitor da Veja,
ele também mencionou entrevista “espírita” dada por Marcos Valério à revista,
na qual Lula teria sido apontado como chefe e mentor do mensalão.
Isso me pôs a refletir sobre os caminhos expressos
naquelas manchetes que dividiram a capa do Estadão.
Sobre a renovação do discurso do PSDB sugerida pelo
ex-presidente FHC, pode até acontecer, mas não terá efeito eleitoral. O PT
encampou a social democracia tucana e, aliado ao PMDB, ocupou firmemente o
centro que sempre conduziu o projeto de modernização conservadora do Brasil. Ao
PSDB, como temos visto em eleições recentes, sobrou o eleitorado de direita, o
eleitorado antipetista representado pelos quatro senhores de meia idade e
classe média que testemunhei conversando no Pacaembu.
Estimo que o eleitorado antipetista represente
cerca de 30% dos votos em São Paulo, capital, talvez o mesmo em outras
metrópoles. Ele alimenta e é alimentado pelos grandes grupos de mídia, acredita
e reproduz tudo o que escrevem e dizem os colunistas políticos dos grandes
jornais e emissoras de rádio e TV. Há, no interior deste grupo de 30% dos
eleitores, um núcleo duro dos que militam no antipetismo, escrevendo cartas aos
jornais, ‘trabalhando’ nas mídias sociais e participando daquelas manifestações
geralmente fracassadas que recebem grande cobertura da mídia do Instituto
Millenium.
Este processo de retroalimentação entre a mídia e
os militantes do antipetismo é importante, na medida em que permite sugerir a
existência de uma opinião pública que reflete a opinião publicada. É por isso
que os mascarados de Batman, imitadores de Joaquim Barbosa, aparecem com tanta
frequência na capa de jornais; é por isso que os jornais escalam repórteres e
fotógrafos para acompanhar os votos de José Dirceu e José Genoíno e geram um
clima de linchamento público contra os condenados pelo STF; é por isso que os
votos de Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski nas recentes eleições foram
usados de forma teatral para refletir a reação da “opinião pública” (de dois ou
três, diga-se) ao “mocinho” e ao “bandido” do julgamento do mensalão.
Curiosamente, ninguém se interessou em acompanhar os votos de Luiz Fux e Rosa
Weber.
O antipetismo é alimentado pelo pensamento binário
do nós contra eles, pelo salvacionismo militante segundo o qual do combate às
saúvas lulopetistas dependem a Família, a Pátria e a Liberdade.
Criar essa realidade paralela é importante. Em
outras circunstâncias históricas, foi ela que permitiu vender a ideia de que um
governo popular estava sitiado pela população. Sabe-se hoje, por exemplo, que
João Goulart, apeado do poder pelo golpe cívico-militar de 1964 com suporte dos
Estados Unidos, tinha apoio de grande parcela da população brasileira, conforme
demonstram pesquisas feitas na época pelo Ibope mas nunca divulgadas (por
motivos óbvios).
[Ver aqui sobre o apoio a Jango]
Hoje, o mais coerente partido de oposição do
Brasil, a mídia controlada por meia dúzia de famílias, forma, dissemina e mede
o impacto das opiniões da militância antipetista. O consórcio midiático, no
dizer da Carta Maior, produz a norma, abençoa os que se adequam a ela
(mais recentemente a ministra Gleisi Hoffmann, que colocou seus interesses particulares
de candidata ao governo do Paraná adiante dos do partido ao qual é filiada) e
pune com exílio os que julga “inadequados” (o ministro Lewandowski, por
exemplo).
Diante deste quadro, o Partido dos Trabalhadores,
governando em coalizão, depende periodicamente de vitórias eleitorais como uma
espécie de salvo conduto para enfrentar a barulhenta militância antipetista.
Esta sonha com as imagens da prisão de José Dirceu,
mas quer mais: o ex-presidente Lula é a verdadeira encarnação do Mal. É a fonte
da contaminação do universo político — de onde brotam águas turvas,
estelionatos como o Bolsa Família e postes eleitorais que só servem para
disseminar o Mal.
O antipetismo é profundamente antidemocrático, uma
vez que julga corrompidos ou irracionais os eleitores do PT. Corrompidos pelo
“estelionato eleitoral” do Bolsa Família ou incapazes de resistir à retórica
demagoga e populista do ex-presidente Lula e seus apaniguados.
A mitificação do poder de Lula, como se emanasse de
alguém sobre-humano, é essencial ao antipetismo. Permite afastar o
ex-presidente de suas raízes históricas, dos movimentos sociais aos quais diz
servir, desconectar Lula de seu papel de agente de transformação social. O
truque da desconexão tem serventia dupla: os antipetistas podem posar de
defensores do Bem sem responder a perguntas inconvenientes. Quem são? A quem
servem? A que classe social pertencem? Qual é seu projeto político? Quais são
suas ideias?
A crença de que vencer eleições, em si, será
suficiente para diminuir o ímpeto antipetista poderá se revelar o mais profundo
erro do próprio PT diante da conjuntura política. O antipetismo não depende de
votos para existir ou se propagar. Estamos no campo do simbólico, do quase
religioso.
Os quatro senhores do Pacaembu, aos quais aludi
acima, estavam tomados por uma indignação quase religiosa contra Lula e o PT.
Pareciam fazer parte de uma seita capaz de mobilizar todas as forças,
constitucionais ou não, para praticar o exorcismo que é seu objetivo final.
Como aconteceu às vésperas do golpe cívico-militar de 64, o que são as leis
diante do imperativo moral de livrar a sociedade do Mal?
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