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quarta-feira

O monoteísmo como base ideológica para o autoritarismo e a centralização

Crítico do monoteísmo, o professor e teólogo indiano Felix Wilfred considera que o mesmo funciona como aniquilador do pluralismo e da diversidade. Para ele, “a concepção de Deus como único tem grande influência na forma de governar. Como há somente um único Deus, torna-se fácil concluir que toda a verdade e poder estão outorgados a uma única pessoa – um imperador, um papa, um bispo etc., excluindo-se práticas democráticas e formas participativas. Então, o monoteísmo poderia servir como uma base ideológica para o autoritarismo e a centralização”.
O teólogo acredita que há uma tarefa comum para todas as religiões. “Elas não estão em um mercado competitivo, cada uma reivindicando ter a melhor ideia de Deus. Uma vez que sabemos que o mistério divino é muito maior e mais importante que qualquer símbolo religioso tenha tentado descrever, percebemos que todas elas precisam agir em conjunto para ajudar as pessoas a descobrir Deus”. Felix Wilfred é professor na Universidade de Madras, em Chenai, na Índia. Escreve frequentemente artigos para revistas de âmbito nacional e internacional, entre os quais citamos Pro Mundi Vita (da Bélgica), Pro Dialogo (da Itália), Selecciones de Teología (da Espanha), Communio. Também contribui com seus artigos para a New Catholic Encyclopedia, para Lexikon fuer Theologie und Kirche e para o Cambridge Dictionary of Theology. Ele é presidente do Comitê Internacional da revista Concilium. Confira a entrevista.
Qual é a contribuição do diálogo inter-religioso no sentido de mostrar que existem várias concepções e experiências de Deus?
Felix Wilfred
- A resposta está contida na própria pergunta. A contribuição do diálogo inter-religioso é exatamente demonstrar que há várias concepções e experiências de Deus. Através do diálogo, a pessoa se torna consciente dos limites das concepções e das experiências em sua própria tradição, diante da pluralidade da experiência do sagrado. Este despertar para uma visão muito mais ampla do mistério do sagrado é a forma com que o diálogo inter-religioso pode contribuir. Além disso, o que se aprende dos fiéis de outras religiões ajuda a rever a própria tradição com novos olhos.
O que caracteriza a crise da concepção cristã de Deus?
Felix Wilfred
- A primeira crise está relacionada à questão do relacionamento de Deus com o mundo ou o universo. Na interpretação cristã, Deus é um criador e originador de tudo o que há. O mundo e Deus estão relacionados entre si em termos de causa e efeito, e, consequentemente, são diferentes um do outro. Mas tem-se constatado que esta forma de conceber Deus tem sido muito extrínseca, seguindo o modelo da ação humana que produz algum efeito. Uma segunda fonte de crise é a insistência na unicidade de Deus ou no monoteísmo. Na tradição semita isso é tão fundamental que qualquer coisa que se refira à pluralidade de deuses e deusas é visto como o pior dos pecados – o pecado de idolatria.
Uma terceira crise tem a ver com as contradições na concepção cristã sobre Deus, especialmente ao confrontar o problema do mal. Uma concepção de Deus exteriorizado, separado do mundo, não tem como evitar a pergunta pela explicação do mal – unde malum? (latim: "de onde vem o mal?"). Uma quarta crise resulta do fato de que uma vida transformada não requer necessariamente a existência de um Deus transcendente. Exemplo claro disto é o budismo, que tem orientação muito ética. Na verdade, o ressurgimento do budismo e sua propagação no Ocidente demonstram unicamente a atração exercida pela percepção ética de relacionamentos corretos e o declínio de uma metafísica que fundamentava a concepção de Deus sobre um relacionamento de dependência. O desafio de orientar-se pela transformação própria sem fazer referência à transcendência, hoje está acompanhado de vários tipos de ética, tais como a ética utilitária e a ética humanística, que não exigem Deus como base. A vida humana é, muitas vezes, representada como um drama, no qual a pessoa desempenha seu papel em meio a agonias e êxtases.
Quais são os principais problemas do monoteísmo?
Felix Wilfred
- Existe basicamente uma correspondência entre a nossa concepção do divino e a ordem de sociedade que criamos. Neste sentido, concepções de Deus não são diferentes das realidades sociais, ao contrário, exercem profunda influência sobre elas. Monoteísmo é um caso típico. A forma como Deus é descrito como único, sob exclusão de outros, dá ao crente certo senso de poder absoluto e espaço para declarar a posse de toda a verdade. Portanto, como outros deuses e deusas são excluídos em favor de um, a tendência é livrar-se da pluralidade de opiniões, culturas, tradições, estilos de vida etc. Resumindo, o monoteísmo poderia, e de fato assim o fez, funcionar como aniquilador do pluralismo e da diversidade.
Segundo, a concepção de Deus como único tem grande influência na forma de governar. Como há somente um único Deus, torna-se fácil concluir que toda a verdade e poder estão outorgados a uma única pessoa – um imperador, um papa, um bispo etc., excluindo-se práticas democráticas e formas participativas. Então, o monoteísmo poderia servir como uma base ideológica para o autoritarismo e a centralização.
Qual é o papel do hinduísmo no sentido de promover a tolerância e evitar guerras religiosas?
Felix Wilfred
– Não quero apresentar uma visão perfeita da tradição hindu. Devo admitir que tenham ocorrido sérios conflitos e confrontos dentro da própria tradição hindu em relação às crenças, práticas etc., assim como com outras tradições religiosas. Mas, em geral, a tradição hindu exibe um notável espírito de tolerância e capacidade de relação com uma ampla variedade de experiências religiosas e espirituais. Além disso, a crença hindu básica, de que existem inumeráveis caminhos que nos levam ao divino, estimulou o reconhecimento da liberdade na busca espiritual, e, consequentemente, o espírito de tolerância. Não houve nada como Trinta Anos ou Cem Anos de guerras religiosas no que se refere ao hinduísmo. Ultimamente, porém, por causa da influência das religiões semitas (judaísmo, cristianismo e islamismo), alguns grupos hindus tornaram-se intolerantes e fundamentalistas. Como observa Arvind Sharma, o hinduísmo tornou-se intolerante com a intolerância manifestada especialmente nas religiões semitas.
Qual o papel do diálogo inter-religioso no sentido de fazer de Deus uma busca humana e no sentido de ajudar as pessoas a descobrir o divino?
Felix Wilfred
- Acredito que há uma tarefa comum para todas as religiões. Elas não estão em um mercado competitivo, cada uma reivindicando ter a melhor ideia de Deus. Uma vez que sabemos que o mistério divino é muito maior e mais importante que qualquer símbolo religioso tenha tentado descrever, percebemos que todas elas precisam agir em conjunto para ajudar as pessoas a descobrir Deus. Resumindo, longe de uma abordagem competitiva ao tratar de Deus, as religiões serão colocadas no caminho que ajuda as pessoas a experimentarem o mistério divino.
O senhor pode explicar a questão da existência de um Deus transcendente? Em que sentido o budismo apresenta essa questão como um desafio?
Felix Wilfred
- A realidade de Deus é geralmente apresentada para explicar a existência do mundo e do universo. Utilizando a experiência humana de causa e efeito, começa-se a pensar Deus como a causa do mundo e do universo. O budismo é um desafio para esta forma de imaginar Deus, utilizando o argumento da causalidade. Pois ele acredita que causa e efeito não podem ser separados. Um está no outro. Por isso, o budismo apresenta um sério desafio para a concepção de um Deus transcendente como criador e causa do universo. Segundo, Deus é colocado como ponto de referência ou base para práticas éticas. O budismo, por outro lado, sustenta fortes ideais éticos sem ter que recorrer a um Deus transcendente. Sabedoria, solidariedade e compaixão sugeridas pelo budismo para todas as criaturas são praticadas sem referência a qualquer transcendência de um Deus pessoal. Por que o senhor acredita que várias religiões juntas ajudam mais a descobrir o mistério de Deus do que uma religião sozinha?
Felix Wilfred
- Isso ocorre porque Deus é um mistério, e cada religião consegue fazer com que vejamos apenas um pequeno fragmento dele. Na tradição indiana, há uma história famosa sobre os cinco homens cegos que descreveram de formas completamente diferentes suas experiências com um elefante. O que tocou as pernas robustas disse que o elefante é como uma árvore; o que tocou sua orelha disse que o elefante é como uma peneira de palha; o que tocou na tromba disse que o elefante era como um tubo maciço. Isto é o que muitas vezes ocorre com as religiões. Não se pretende uma visão completa de Deus, juntando as várias descrições e imagens que cada religião apresenta d’Ele, assim como, ao juntar as descrições feitas pelos homens cegos sobre o elefante, não temos a visão completa do mesmo. O que temos realmente são simples fragmentos e fagulhas que nos ajudam a compreender um pouco mais, e juntá-los não nos dará a visão completa.
Vivemos de percepções que adquirimos diariamente e de novas centelhas de experiência divina. O que podemos entender pela abordagem mística de Deus?
Felix Wilfred
- O que respondi na questão anterior também nos leva a responder esta questão. Se o que dissemos relativo ao mistério de Deus for verdade, então, os instrumentos humanos de conhecimento da razão e da mente não são capazes de nos levar ao mistério de Deus. É baseado na experiência e em uma forma de conhecimento que não é derivada da dicotomização entre sujeito e objeto. Pois Deus não é um objeto como qualquer outro da nossa experiência diária. Seria mais correto afirmar que Deus é o sujeito, que, ao conhecê-lo, a gente conhece a si mesmo e tudo o que há. A abordagem mística é uma abordagem em que o sujeito, pela união, entra no Sujeito. A pessoa (self; si-mesmo) imerge na grande Pessoa (Self).
A abordagem mística proporciona conhecimento e experiência de Deus através da união e comunhão. Como o conceito de pós-metafísica aparece no budismo e no hinduísmo?
Felix Wilfred
- Se entendo bem o que na filosofia contemporânea ocidental é caracterizado como pensamento pós-metafísico sob influência de pensadores como Heidegger, Jürgen Habermas, Michel Foucault e outros, não consigo resistir em dizer que isso é algo que o budismo e algumas vertentes do hinduísmo sempre têm dito e que pensadores ocidentais descobriram recentemente no contexto do desenvolvimento de seus próprios pensamentos. O budismo, em particular, tem desafiado a atribuição de propriedades permanentes ou metafísicas a qualquer coisa. Sempre sustentou a fluidez ou o fluxo e a transitoriedade de tudo, e caracterizou como fantasia qualquer tentativa de capturar a realidade em um molde metafísico permanente. É por isso que acho que há muito espaço para conversas e diálogos entre o pensamento pós-metafísico proposto recentemente no Ocidente e os ramos pós-metafísicos tradicionais do pensamento e cultura budistas e hinduístas. Ambos os pensamentos, pós-metafísico ocidental e pós-metafísico budista, poderiam se unir para desafiar a concepção cristã dominante sobre Deus.
Quais as características de um Deus pós-metafísico e como ele se insere em uma sociedade pós-secular?
Felix Wilfred
- Diferentemente da tradição ocidental e semita, a tradição indiana, especialmente a tradição budista, sempre enfatizou a fluidez ou a transitoriedade da realidade em contraste à sua solidificação num molde metafísico. O secularismo, dentre outras coisas, veio a ser a negação de uma concepção de Deus e de religião que alegou explicar a totalidade da vida em todas as suas dimensões. Foi em reação a isso que o ideal secularista ocidental surgiu, afirmando a autonomia e independência do mundo. Se o pós-metafísico coloca o indivíduo em uma jornada pela descoberta da realidade última, o caráter pós-secular nos diz que esta descoberta tem significado social e até mesmo político. A abordagem pós-metafísica de Deus precisa andar paralelamente com a pós-secular, desafiando a veracidade do processo secularista. A grande vantagem de uma abordagem pós-metafísica de Deus, que precisa acontecer em todas as tradições religiosas, é que ela desafia a narrativa dada sobre Deus ou crenças como definitivas, acima de qualquer dúvida e verificação. As religiões ficam presas no mito metafísico quando se vinculam às imagens pré-determinadas de Deus e aos sistemas de crenças. Uma cosmovisão evolucionária e a compreensão do quanto o sujeito está envolvido na construção da realidade têm grandes repercussões sobre as narrativas tradicionais sobre Deus. Estas abordagens, ao mesmo tempo em que desafiam as narrativas de Deus presas à fixação metafísica, também poderiam ter uma influência sobre a esfera pública. "Domínio público" é termo técnico com outro significado. A linguagem humana e a linguagem da naturezaO antropocentrismo não precisa ser um obstáculo para Deus, se entendermos que os seres humanos podem acessar o mistério divino a partir das suas próprias experiências. É natural que os seres humanos utilizem imagens e símbolos que reflitam a si próprios quando falam de Deus. Hoje deveria haver um esforço consciente para narrar Deus a partir do relacionamento das pessoas humanas com a natureza. De certa forma, a natureza espelha a realidade fundamental não menos do que os seres humanos. Por isso, a linguagem humana precisa incorporar também a linguagem da natureza, uma eco-espiritualidade ao narrar Deus e a realidade definitiva. O eurocentrismo infelizmente restringe o acesso a Deus e a narrativa sobre Deus à experiência ocidental limitada. Caso as tradições religiosas não revisarem seriamente as bases metafísicas de suas narrativas sobre Deus, poderão interferir na sociedade e no âmbito político de forma a pôr em risco a paz e a harmonia. As sociedades no Oriente e no Ocidente precisam ser tanto pós-metafísicas quanto pós-seculares. Isto requer uma transformação nas narrativas metafísicas tradicionais sobre Deus por parte das religiões, e uma transformação por parte das sociedades seculares, para uma sociedade pós-secular que permita a expressão social e política da experiência pós-metafísica de Deus. Hoje, tanto nas sociedades em desenvolvimento como nas sociedades pós-seculares, reconhecemos o papel que a religião possui. Uma interpretação renovada da religião e da imagem de Deus nas diversas tradições religiosas é fundamental para um papel público e construtivo da religião nas sociedades – tanto no Oriente quanto no Ocidente.
Fonte: Amai-vos

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