Amigo Fagner
Admiro teu interesse pela causa dos trabalhadores do setor
das comunicações, tremendamente explorados e esgotados pelas multinacionais hegemônicas
da telefonia. Na admiração que te tributo aprendo muito contigo e me orgulho de
contar contigo como membro do Comitê Cidadania e Política da Ibrapaz.
Sei que és católico romano praticante. Isso é interessante,
pois comungas na mesa eucarística e te dedicas à luta pelos direitos sociais de
uma categoria tremendamente estressada pela sede desenfreada de lucro por parte
dos assaltantes das empresas a quem foi vendida a nossa telefonia, apesar de
ser estratégica para nosso País.
Sei que tratar do tema que envolve muita picaretagem em torno
da figura e história de Jesus não será chocante nem desagregador para ti, até
mesmo levando em conta tua formação acadêmica, portador do diploma de filósofo
que és. Ora, para o filósofo nada do ser humano, de suas instituições, de suas
crenças e história é estranho, embora muitos de seus atos sejam aberrações
éticas, morais e políticas.
Vivemos ainda sob o bafejo da denominada semana santa que faz
o mundo parar para pensar em Jesus. Eu, porém, considero que todas as semanas
são santas.
Nas cartas I, II e III tratei da partilha dos bens da terra,
da postura do serviço radical em favor da humanidade, principalmente dos pobres
e injustiçados e da morte de Jesus, que assumiu a causa libertadora do ser
humano, por isso foi crucificado. Afirmei naqueles textos aqui no blog +Cartas
e Reflexões Proféticas que todos os fantásticos valores vivenciados por Jesus e
pelos cristãos primitivos, até o século IV, foram prostituídos e manipulados
pelas classes dominantes objetivando iludir as classes subalternas para mantê-las
vazias de rebeldia e reação revolucionárias.
Encerro as reflexões atinentes à dita semana santa pensando
sobre outra mistificação, a chamada ressurreição de Jesus. Esta também é muito
usada pelas classes dominantes como forma de cooptar as emoções dos oprimidos política,
social, econômica e ideologicamente, massacrando suas consciências de classe.
A manipulação e as mentiras em torno da ressurreição começam
por esgotar totalmente a história da páscoa como processo político e social de
luta rebelde contra o império que destrói as relações e vidas dos oprimidos.
A páscoa é muito cara para a tradição “javista” – a ala do
Velho Testamento que sempre entendeu que Deus chamou seu povo para a luta
contra todos os tipos de “faraonização” – divinização da elite que usou o
Estado como aparelho para dominar e escravizar o povo. Depois que o povo
escravo conquistou a liberdade a teocracia judaica tomou para si o poder de
explorar os trabalhadores usando o culto e Deus para manipulá-lo, como faziam
os Faraós do antigo Egito, denunciados furiosamente pelas comunidades proféticas,
como parte de Jeremias, de Isaías, principalmente Amós, Oséias e Miquéias, os
profetas da justiça e da misericórdia.
A partir do século quarto de nossa era, as igrejas cegas às
artimanhas do Imperador Constantino, renderam-se à idolatria romana e sucumbiram
mais uma vez, matando a ressurreição pascal de Jesus. Vale lembrar que a páscoa
que Jesus celebrou nos subúrbios de Jerusalém com seus discípulos foi orientada
pelo espírito original da libertação construída e celebrada pelos escravos que
saíram do Egito, 1500 anos antes de nossa era. A páscoa celebrada por Jesus não
tinha cordeiro morto. Foi superação dos crimes ecológicos contra os animais. Foi
avanço no sentido de que o pão e o vinho foram comida e bebida em ambiente
tenso de perseguição por causa da luta libertadora empreendida por Jesus e sua
comunidade. O ato de partilhar o pão e o vinho significou propor àquela
comunidade o projeto radical de Jesus na construção do amor, da justiça e da
paz entre as pessoas, sem exploração de uma classe pela outra.
Portanto, a ressurreição de Jesus é a mais radical,
maravilhosa e poderosa conscientização do
projeto de Jesus com sua comunidade discipular, que se transformou em dezenas
após seu assassinato pelo império romano em conluio com os fariseus e
sacerdotes traidores da páscoa original, sinal de libertação da opressão e dos
opressores.
Os 4 evangelhos – Mateus, Marcos, Lucas e João - não são
reportagens sobre a vida, o ministério e a morte de Jesus. São documentos coletivos
produzidos pelas comunidades que se espalharam pela África, pela Ásia e pela Europa.
Marcos, o primeiro que apareceu, foi escrito entre 50 e 70 anos após a vida de
Jesus. João foi elaborado por sua comunidade, predominantemente de mulheres,
mais ou menos entre 100 e 150 anos depois que Jesus morreu.
Portanto, o Jesus ressurreto produzido por esses preciosos
documentos de fé passou pela construção marcada por gigantescas discussões,
compreensões diferenciadas de cada comunidade, lutas e interpretações, inclusive,
por traições e assassinatos de pessoas em litígios . Isso é muito evidente até
mesmo numa leitura simples dos acontecimentos após a crucificação durante quase
dois séculos. A forma literária usada para escrever os evangelhos é como peças
teatrais que mostram personagens sobre o palco da história. Tomé não era um
indivíduo somente, mas uma corrente que duvidava da ressurreição; Judas outra
opinião que afirmava que a proposta de Jesus não se diferenciava essencialmente
do que o império romano fazia ao massacrar o que chamava de bárbaros. E assim
por diante.
Para resumir, importa afirmar que a ressurreição de Jesus
passa, e somente aí ela é fiel, pelas experiências de comunidades que constroem
em si mesmas a proposta do reino pregado por ele, mediadas pela justiça e pela paz
agora historicamente nas relações humanas.
Essa é a experiência de fé das comunidades onde Jesus
ressuscita como libertador que deu um nó no império romano; o Jesus que fez
seus poderosos exércitos tombarem de sono à porta do túmulo da morte dos sonhos
dos mártires e salvadores do mundo, é o Jesus pascal autêntico. Importa menos
saber onde foi sepultado o cadáver de Jesus, se ascendeu aos céus ou foi desovado
numa vala comum de indigentes, como cogita o Padre e teólogo Roger Lenaers (LENAERS, Roger. Outro cristianismo é possível A fé em linguagem moderna. São Paulo: Paulus, 3ª edição, 2011) –
discussão violenta do filme “O Corpo”, com participação desesperada do
Vaticano, de Israel e da Ciência – e muito mais a ressurreição de seu projeto
do reino de justiça e paz, onde não mais haverá injustos que pisam sobre
pessoas, praticando injustiças que desfiguram a imagem humana, vocacionada para
gerar irmãos e irmãos e não algozes e exploradores desumanos.
O Jesus ressurreto das comunidades cristãs primitivas, retratado
pelos evangelhos canônicos, estimula coragem em seus assustados e acovardados
discípulos. Mostra as mulheres dignificadas como as primeiras a se deparar com
a revitalizante força da proposta de Jesus, por isso são as primeiras a se deparar
com ele na experiência pascal da ressurreição. Aquela experiência de fé configura
o companheirismo do Jesus que senta à beira de um lago para partilhar a comida
em forma de pão e peixe, como é sua proposta de justiça para que não domine a fome
de um lado e o esbanjamento perverso de outro. O Jesus ressurreto do evangelho
de Lucas caminha e debate com discípulos confusos que ainda não entenderam o
projeto pascal de libertação de tudo o que oprime e desgraça o ser humano e a
vida. Interessante, no desenho do Jesus ressurreto feito na literatura do
pintor Lucas, após a refeição partilhada com Jesus, seus discípulos insistem na
infantilidade em querer que ele sempre os ampare pelas mãos apelando que fique
em sua companhia ante a chegada da noite. O Jesus ressuscitado retratado por
Lucas anima sua comunidade a amadurecer e a assumir a ressurreição na luta pela
ressurreição de milhões de pessoas que morrem gratuitamente sob o tacão das injustiças,
o maior dos pecados. O Jesus ressurreto de João, por sua vez, enfrenta as dúvidas e inseguranças chamadas
Tomé, sem excluí-lo e chicoteá-lo emocionalmente, como fazem os
fundamentalistas.
Em contradição ao Jesus pascal dos evangelhos as igrejas
fazem de Jesus um ser fantasmagórico e autônomo em relação à história e aos evangelhos.
O Jesus das liturgias é um fantasma sem carne, sem história e, sobretudo, sem
comunidade. É soberbo como os imperadores deste mundo a quem as igrejas servem.
É individualista como seus padres, pastores e bispos. É Jesus medieval que
passou incólume pelas inúmeras reformas cristãs ao longo da história,
plenamente serviçal da classe dominante e seu fantoche contra o povo.
Em muitas cidades do Brasil no dia da páscoa, como neste
domingo 20 de abril de 2014, igrejas fazem procissão do Cristo Ressurreto.
Porém, esse Cristo não tem nenhuma relação com as comunidades primitivas do
século I, que deveriam ser referência para nossa fé. O Cristo das procissões e
das manhãs pascais protestantes e católicas não toca nas relações humanas
injustas, que continuam do mesmo jeito que sempre foram desde séculos. Os
machistas continuam a massacrar as mulheres, os fundamentalistas a desrespeitar
homossexuais e as outras religiões, os racistas a serem preconceituosos com
negros e indígenas, os capitalistas a esmagar a alma e a dignidade dos
trabalhadores, os trabalhadores a ser alienados e a achar que ser explorados é
normal, desde que tenham um empreguinho e um salariozinho miserável. Enfim, o
Cristo da páscoa das igrejas é um fantasma usado pela classe dominante, que até
aceita vários dias de folga a seus trabalhadores em troca de sua consciência
escrava e sua coluna dobrada mantendo-os calados e alienados a espera da morte.
Entendes, querido Fagner, por que te admiro? Gosto quando me
dizes que vai bem, graças a Deus. Vejo em ti e no teu exemplo um seguidor do
Cristo vivo e ressurreto na luta contra as injustiças e opressões, que geram
mortos e que mantêm os soldados assassinos às portas dos túmulos que guardam os
sonhos, a consciência e a garra dos lutadores assassinados pela iniquidade dos
poderosos e golpistas de sempre.
Viva a ressurreição de Jesus na luta tenaz e corajosa dos
seus/suas discípulos/as que lutam contra o reino do mal da injustiça e da sua
congênere, a alienação promovida pelas igrejas que preferem o fantasma da elite
dominante ao Cristo que ressuscita a luta libertadora! Engajarmo-nos no projeto
do Jesus ressurreto é nos libertarmos de políticas pequenas, eleitoreiras e
oportunistas para nos entregarmos à fantástica e poética política de libertar a
todos/as de tudo o que destrói a comunhão humana.
Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz.
Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e republicano.
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