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sexta-feira

A elite é escrava do ódio

A raiva da elite e a espiritualidade II: a mentira do mundo e a verdade que liberta
 
Jung Mo Sung
 
Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
Eu terminei o artigo anterior dizendo que a raiva e o preconceito que dominam o "tom” das críticas de setores da elite contra lideranças que questionam profundamente o status quo, como Obama, Chávez e Lula têm a ver com algo mais profundo do que luta política, interesse econômico ou liberdade de expressão. Minha suspeita é que isso tem a ver com a espiritualidade.

Quando digo espiritualidade, não estou referindo à religião ou aos exercícios espirituais das tradições religiosas, mas da força profunda que move as pessoas e grupos sociais. Como escrevi antes, uma boa parte das críticas da elite vai contra o próprio interesse econômico deles. Nesse sentido, é algo irracional do ponto de vista de racionalidade econômica, assim como na perspectiva da democracia. Essa força irracional, por isso preconceituosa, tem estado presente desde o início da construção da "civilização Ocidental Cristã”. A modernidade não é centrada na razão, como propagam os seus ideólogos, mas na articulação da razão com irracionalidade que gera essa raiva e preconceito.

Por ser um tema muito amplo, quero apresentar aqui apenas um tópico: a dominação e a construção da identidade social da elite e dos grupos que se identificam com ela.

Toda ação ou empreendimento social tem pelo menos dois lados: a) atingir o objetivo da ação; b) a construção da identidade do grupo através da sua ação. A expansão do Europa Ocidental, a partir do século XVI, e a construção do sistema capitalista mundial também tem esses dois lados. A burguesia nascente e setores da elite tradicional que se beneficiaram do processo de colonização sobre América, África e Ásia alteraram a configuração mundial, ao mesmo tempo em que construíram sua nova identidade. 

Nesse processo da expansão e exploração econômica sobre América, a escravidão dos indígenas e dos africanos se tornou uma necessidade sistêmica. Sem escravos não era possível explorar a riqueza. Essa necessidade sistêmica cria um problema de identidade: de bons cristãos se tornariam seres humanos desprezíveis que compram e vendem outros seres humanos. Para mascarar essa verdade vergonhosa, foi necessária – para o crescimento desse sistema injusto – a invenção do racismo moderno, pseudocientífico. Com isso, os brancos eram seres humanos plenos, pessoas de outras cores eram menos humanos, "inferiores” proporcionalmente à distância da cor matriz: branca. Nos Estados Unidos, esse racismo leva ainda hoje a caracterizar de "latinos”muitos descendentes de europeus brancos não tão brancos como os nórdicos.

No fundo, o que fizeram foi identificar o lugar (e a função) que ocupa dentro do sistema social com a identidade, o ser, da pessoa ou de grupos sociais. Ser negro e pobre é ocupar um lugar subalterno na hierarquização do sistema social; isso porém não significa, ou não deveria significar, que é uma pessoa não-plena, inferior. Em abstrato, todos estão de acordo, mesmo a elite. Contudo, essa afirmação universal da dignidade de todos os seres humanos cria um problema sério para a elite. 

Setores da elite que não conseguem se sentir humanos somente com a sua humanidade e pensam que são gente porque tem riqueza vivem em estado de mentira e frustração.Precisam criar um mecanismo para esconder sua insatisfação existencial. Uma saída é identificar o lugar social com o "ser”, a função com ontologia, e se sentirem superiores ao resto da humanidade. Esse mecanismo lhes permite aliviar suas frustrações existenciais, suas relações baseadas na inveja e concorrência sem fim entre seus pares, através do desprezo pelos pobres, negros, nordestinos, homossexuais...

Quando surgem pessoas desses setores, como Obama, Lula ou Chávez, e se tornam reconhecidamente líderes que fazem diferença no mundo defendendo os direitos e a dignidade dos "subalternos”, o que está em jogo não é tanto os interesses econômicos da sua classe, mas a sua autoimagem. Descobrem que o "ser” não é igual o lugar que ocupa na hierarquização social; que eles não são seres superiores, somente estão mais ricos ou poderosos. Assim, eles são obrigados a enfrentarem, como todo mundo, suas frustrações existenciais.

Essa situação produz um mal estar existencial que pode se tornar um mal estar da própria civilização moderna. E como todo mal estar exige uma solução. A mais fácil é culpar aqueles que aparecem como a causa direta desse mal estar: essas lideranças e movimentos sociais que clamam que todos os seres humanos são iguais. Assim, descarregar a raiva através de ironias, calúnias ou perseguições.

Uma solução real para esse mal estar seria assumir a verdade: que a dignidade de uma pessoa não depende do lugar que ocupa na pirâmide social. Essa "verdade que liberta” é exigente tanto para a elite quanto para "subalternos” que internalizaram a mentira do mundo. Para assumira verdade que liberta é preciso da "força espiritual”, que vem da fé de que Deus não faz distinção entre pessoas.

[Jung Mo Sung, autor com Hugo Assmann, de "Deus em nós”. Paulus. Twitter: @jungmosung].

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