Amiga Suzy
Recebi teu longo e-mail me alertando quanto aos riscos implicados
na luta por “outro mundo possível”, construído sobre a justiça social, que
propicia paz às pessoas e ao planeta terra. Ao responder-te disse-te que o
abordaria mais amplamente aqui no blog, visto que tuas preocupações comigo
referem-se ao medo que atinge e apavora pessoas no Brasil e no mundo.
Não és a única amiga a te preocupares comigo. Seguidamente
recebo e-mails e telefonemas me alertando que sou um Dom Quixote a lutar contra
gigantes como moinhos de concreto, imóveis e tempestuosos. Alegam que isso
nunca mudará, que é melhor a gente se preservar e viver a vida, pois herói
morto é herói posto.
Impressiono-me com esse tipo de medo, Suzy amiga. Trata-se de
uma poderosa sombra úmida e bolorenta que invade a alma e mata a consciência da
valorização humana, sem arte e sem beleza.
Outro dia debatia com uma professora minha colega e alertava-lhe
que os desvios que ela faz dos problemas sociais é crime contra os direitos
humanos. Gosto muito dela e a admiro por sua inteligência e capacidade
intelectual, mas sinto enorme desperdício de oportunidades alguém contar com
inúmeros estudantes à sua frente e nada fazer contra a humilhação que vivem ao
alienar-se da cidadania.
Minha colega foi docemente franca comigo. Disse-me que sabe
dos problemas sociais, mas que é medrosa. Disse-me exatamente isso: “sou
medrosa”. Claro, ela leciona numa instituição e num curso coordenado por um
neoliberal, que nada entende de educação, por isso é traiçoeiro e desleal com
os professores mais conscientes. Suas fofocas geram demissões e segregação. Ela
teme o desemprego. Ela é dominada pelo medo.
Várias pessoas me excluem das redes sociais – felizmente a
adesão é muito maior do que as fogem de medo – porque temem ser reconhecidas
como minhas amigas. Um bispo do Rio Grande do Sul me excluiu do Facebook de
medo de meu ecumenismo, do meu macro ecumenismo, já que sua igreja traiu sua
história e seus compromissos históricos com os excluídos e das lutas nas quais
me envolvo.
Uma amiga professora de Sociologia aqui da PUC de Goiás me
contou que numa campanha de sindicalização de trabalhadores rurais espantou-se
com trabalhadores/as da cidade de Goiás, calad@s, silencios@s e sem expressão,
onde se reuniu com mais de 500 deles num auditório. Após vários discursos
apelando para o espírito de luta em favor dos direitos d@s trabalhadores/as,
incluindo a sindicalização, ninguém aplaudiu e no final ninguém aderiu ao
sindicato. Ao final do encontro minha colega perguntou a alguns do por que do
sintoma de espanto deles. Responderam: se os patrões descobrirem que estivemos
numa assembleia sindical nos demitem. Por isso ninguém aplaudiu nem se
cadastrou no sindicato. Isso aqui é considerado subversão e revolução para os
patrões, por isso ninguém se filia em sindicatos, responderam alguns.
O medo é uma válvula instintiva no ser humano e muito útil
para livrá-lo de perigos fatíveis. Porém, quando é usado para embotar
consciências de direitos e ilhar as pessoas em egoísmos e individualismos
fantasiosos é risco ao contrário da sua função natural.
O medo contrário à natureza da luta é imposto pela classe dominante
com o objetivo de destruir os laços que coletivizam e unem as pessoas na marcha
por um mundo justo onde e quando todos sejamos irmãos e irmãs, bem como irmãos
e irmãs da terra, da água, do ar e do sol, como rezava São Francisco de Assis.
O medo que escurece a consciência trava as pernas e mete os
explorados no fundo de uma cama é violentamente imposto no ser humano desde a
escravatura. Esta arrancou a vontade das pessoas fazendo-as dóceis aos
proprietários e empobreceu a consciência das raízes culturais e dos direitos
humanos. Creio que o dramaturgo Nelson Rodrigues pensou nisso quando escreveu
seu famoso texto em 31 de maio de 1958, intitulado “Complexo de vira lata”, ao
se referir à timidez e à mania de pequenez que faz o povo brasileiro se
diminuir diante de outros povos. “Por “complexo de vira-latas” entendo eu a
inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto
do mundo.” Na palavra voluntariamente encontra-se a explicação. Primeiro
dão chicotadas, acorrentam, amarram nos troncos e torturam generalizadamente
até dobrar a coluna vertebral da consciência e da vontade, para imprimir a
escravidão na alma e fazê-la guia “natural” de cada pessoa, para espalhar o
estado amorfo e moribundo para toda a sociedade, até que todos não mais tenham
vontade de crer na luta, nas potencialidades, de medo das chibatas feitas chips
ideológicos grudados a comandar ao ajoelhamento e à covardia manipulada.
“É
um problema de fé em si mesmo”, continua Nelson Rodrigues. Mesmo as pessoas que
batem no peito que creem no poder arrebatador de Jesus, no fundo, abrem mãos de
sua responsabilidade com a cidadania para pedir milagres do céu, porque não
creem em si e na luta por mudanças. Esperam que tudo caia pronto de cima, à
margem da história e da ousadia heróica. As pessoas que se queixam e acusam sem
nada fazer organizadamente para mudar o curso das injustiças, submetem-se voluntariamente
aos algozes da consciência e da coragem que ousa, presas aos chicotes irreais e
invisíveis, verdadeiros delírios desumanos, a serviço da Casa Grande.
Claro,
a classe dominante continua aí a assoprar sobre as chibatas, para que suas
brasas não apaguem. Lembras-te da malfadada atriz Regina Duarte, que relegou a
arte e a história do teatro, para servir de capitã do medo, quando na campanha
eleitoral de 2001 dizia: “eu tenho medo?” Foi muito bem paga para soprar a
memória das correntes e dos troncos de escravização, tentando amedrontar o povo,
exercendo o papel mercenário da intimidação.
Tanto
a direita através da mídia, da religião narcotizante, das políticas privatistas
e elitistas etc quanto a esquerda sem povo e antissocial se unem para aumentar
o medo no coração popular. Setores da esquerda, que no fundo sempre se unem à
direita tanto nos discursos quanto nas ações, sabotam a libertação do medo
quando atiçam o terror. Deliberadamente a polícia militarizada é usada pela
direita para intimidar e fazer dos problemas sociais questões policiais.
A
esquerda caótica colabora com a direita quando se infiltra nas manifestações do
povo, dos trabalhadores, das mulheres, dos indígenas, dos negros etc – até porque
não os tem – para promover violências e quebra-quebras. Num brilhante artigo Wanderley
Guilherme dos Santos diz que esses grupos são minorias que tentam vergar autoritariamente
a maioria, no vão esforço de arrebanhar o povo aos seus programas violentos e predatórios.
Escreve Wanderley: “A
população trabalhadora tem direito a exigir transportes suficientes e em boas
condições, mas previamente tem o direito constitucional de ir e vir. Conta-se
que, na China pré-conquista do poder, o Partido Comunista organizava greve de
bondes fazendo os transportes rodarem gratuitamente. Não li que jamais os
incendiasse e obrigasse os trabalhadores seguirem a pé para suas casas” (lê mais aqui). Santos alerta, com base na
experiência do Chile, que as ações da esquerda sem povo são semelhantes às da direita
fascista: “...o primeiro ato da derrubada de Salvador Allende desenrolou-se com
uma paralisação de transportes seguida de um lock-out do comércio de alimentos.
Não conheço tratado de política em que tais movimentos prenunciem avanços
democráticos. Conheço histórias em que os desfechos foram tiranias longevas.”
No Brasil, em vários países da América Latina, notadamente na
Venezuela, onde os Estados Unidos articulados com a oposição de lá, dela
participando a extrema esquerda, programaram matar o Presidente Maduro,
constitucionalmente eleito pela maioria de seu povo, e no mundo a direita
fascista e a esquerda terrorista se unem nos discursos moralistas, acusatórios
sem provas e nos quebra-quebras, principalmente do patrimônio público para
depor os eleitos democraticamente e romper os avanços.
Tudo isso intimida e amedronta “os de alma deficiente”, como
poetizou Mario Quintana, os incapazes de amar o próximo socialmente e
deficientes na luta organizada.
Há muita confusão propositada que ilude a sociedade, concebendo
que parlamentares e governantes, por serem eleitos para nos representar,
somente por isso, darão as soluções mágicas para todos os problemas nacionais e
sociais. Não é assim. Nos moldes capitalistas governantes e parlamentos só
fazem as transformações com a luta do povo organizado, que persistentemente
pressiona e acumula forças na unidade e nas conquistas. Nesse sentido temos longo caminho de lutas a
percorrer. A ditadura recentemente derrubada e o neoliberalismo de FHC, em
muitos aspectos ainda ativo, deixaram marcas e prejuízos que carecem ser
expulsos pelo povo nas ruas.
O medo desbota a consciência e brocha a luta, desunindo o
povo e anarquizando a energia que transforma a sociedade.
A hora é de coragem, de luta destemida e de tesão pela
justiça e pela paz sociais. Quem luta assim com o povo não tem medo porque vê
lá na frente a nova sociedade que nasce do parto d@s dedicad@ e consagrad@s à
luta, dos que não fogem covardemente.
Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz.
Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e republicano, em todas
as circunstâncias.
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