Querido Padre Charles
Ontem me comovi profundamente com nossa conversa. Senti profundo
laço de comunhão entre nós.
Disseste-me que muitas vezes te sentiste mentindo para tuas
comunidades quando vias o povo cansado da brutal exploração semanal ir aos domingos
buscar na eucaristia, na homilia do padre, nas orações e na bênção por ele
impetrada a maquiagem mentirosa de que tudo é certo, justo e honesto. Contaste-me
entristecido que te sentias enganando o povo ao atenuar sua falta de
consciência diante das injustiças capitalistas enfrentadas avassaladoramente a
cada dia. Isso te fazia mal.
Saí de nosso encontro profundamente associado com teus
sentimentos. Felizmente, apesar de todas a pressões, eu sempre me neguei cumprir o papel de
maquiador da realidade, usando a religião para enganar as pessoas. Nem como educador uso a educação para mentir, como muitos sempre fazem. Por isso
sofri muito durante a ditadura e perseguições por parte de bispos e de igrejas.
Muitos “santinhos” foram os primeiros a me denunciar para os órgãos de
repressão, redundando em prisões e num julgamento violento, calunioso e
arbitrário num tribunal militar espúrio em Santa Maria-RS, condenando-me a dois
anos e seis meses de prisão, sem nenhuma verdade ou prova, num júri
absolutamente mentiroso e manipulado.
Nesta noite, na virada de 31 de março para 1º de abril de 22014, dormi mal e tive pesadelos. Minha alma gritou
contra as mentiras que serviram de argumentos falsos para o golpe. Mentiras,
aliás, ainda em ação em nossos dias.
Uma das mentiras foi fertilizada exatamente pela religião. Grupos
de extrema direita se juntaram para promover o teatro de baixa qualidade
denominado “Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade”.
Nesse teatro tudo é mentira no nome que deram ao movimento.
Lá não houve marcha. Há 50 anos fizeram banalização da junção
das pessoas. Houve uma manifestação momentânea e meteórica de pessoas raivosas
caminhando contra a democracia, contra a justiça social e contra o Brasil. Quem
participou daquilo não fez marcha, o que implicaria em projeto, em alianças
fundadas em articulações sérias que passam pelo diálogo e pelo entendimento
comum do que todos querem. Lá não marcharam, mas mentiram e puxaram o ódio e o
terror assassino contra o Brasil.
Mentiram quando disseram que era com Deus. O deus a quem as
marchadeiras se referiram não tem nenhuma relação com o Deus hebraico-cristão, profundamente
comprometido com a marcha – esta sim é marcha – pela libertação, pela justiça,
pela distribuição de terras, onde reine a paz, onde não haja opressão e
lágrimas de crianças mortas pelas patas dos cavalos e pelas espadas do Estado
terrorista. O deus daquela marcha de 1964 é o da TFP e da Opus Dei. E um deus
odioso, “protetor” dos ricos, dos negócios dos que roubam as carnes, o sangue e
a saúde daqueles que pediam desesperadamente a bênção dos padres para levar até
onde pudessem o sofrimento da exploração. O deus das marchadeiras é um ídolo
pés de barros, sempre pronto a untar de olho “santo” as correntes dos escravos
e as armas poderosas dos opressores e ladrões do que é do povo. As rezas usadas
não guardavam nenhuma relação com as orações do povo sofrido. Foi pura
usurpação.
A “família” cujo vocábulo ajudava a dar nome para a falsa e
mentirosa marcha não era família onde reina amor, diálogo, sexualidade comunhão,
apoio comunitário. Não, a “família” da marcha mentirosa é o grupo da casa
grande, dos assaltantes do Estado e estupradores da democracia. A família da
marcha mentirosa é o nome dado aos mafiosos civis e militares que tomaram a
democracia de assalto para usarem o Estado como ponte de travessia de golpes,
negociatas e prostituição do País. A família de muitas marchadeiras, na verdade,
eram bandos da iludida classe média, que gritavam slogans contra os comunistas,
contra as reformas de base sem se quer se darem ao trabalho de ler alguma coisa
que as esclarecesse sobre o que ocorria no País e no mundo.
A palavra “liberdade” que escreveram nas faixas da marcha
mentirosa significou preconceitos, ódio e dogmatismo barato contra o que mentiam
sobre o socialismo. Até hoje mentem sobre isso. A liberdade que reivindicavam,
na verdade, era uma tática despida de inteligência e de estudos, para assustar
o povo que avançava fortemente pressionando por reformas de base contra o imperialismo, este sim manipulador,
golpista, antidemocrático e terrorista contra a soberania dos povos. A palavra
liberdade que usaram para nominar sua marcha golpista era o contrário do que
a palavra significa em termos de liberdade para todo o povo com direitos a morar,
a estudar, a trabalhar, à saúde, a viajar, a cultivar nas terras, que a
sociedade pressionava por reforma agrária e à soberania para decidir
participativamente os destinos do Brasil, sem a interferência do império
americano.
Portanto, Padre Charles, hoje recordamos os 50 anos do golpe
civil-miliar dado contra o Brasil na madrugada de 1º de abril de 1964.
Daí em diante foi só mentira. Os golpistas esconderam a
pesquisa na qual a maioria do povo brasileiro apoiava o governo do Presidente
João Goulart. Os golpistas afrontaram a verdade e a ciência ao mentirem que
fizeram a “revolução” contra os que não queriam mais o governo de Jango.
A mídia mentiu – exatamente como faz hoje - ao esconder os
crimes da ditadura golpista. Carros de órgãos da imprensa foram doados pelos donos
para transportar patriotas e heróis que lutavam contra o arbítrio e contra as
trevas, arrastando-os para os porões de torturas e de morte. A mídia mentiu
quando longe do povo enganado usava seus noticiários para divulgar infâmias,
calúnias e pintar um Brasil “maravilhoso”, escondendo a corrupção e o roubo em
alta escala.
As igrejas mentiram quando pediam para o povo rezar
pela “revolução” e pelas “autoridades”. Sofismaram ao chamar de autoridades os terroristas que
tomaram o Estado à força . Isso foi tão feio ao ponto de esquecerem
que somente são autoridades as pessoas que usam o poder para servir e promover
o próximo. Quem usa o poder para perseguir e sufocar os direitos humanos não é
autoridade, mas autoritário e terrorista. Em troca das mentiras calaram padres,
teólogos, bispos e trabalhadores que lutavam para desmascarar as mentiras
poderosamente empoleiradas no Estado. O Papa João Paulo II veio ao Brasil para
respaldar a ditadura sob o general João Figueiredo, que preferia o cheiro dos
cavalos ao cheiro do povo.
As igrejas mentiram quando permitiram que a ditadura golpista
chamasse seu teatro de horror de “revolução redentora”, numa verdadeira afronta
militar e terrorista contra a verdade que os conceitos originais de revolução e
redenção significam. Graças a isso muitos capelães militares católicos romanos
e protestantes oravam ao lado dos torturadores nos atos diabólicos de torturar
e matar heróis capturados do meio da luta libertária.
Os falsos partidos políticos, na época a ARENA e o MDB, o
partido do sim senhor e o do sim, foram antros de mentiras contra o que deveria
ser verdadeiramente luta política contra o terror. Muitos dos mentirosos daqueles
antros e balaios de bichos preguiças ainda atuam hoje em Brasília, nos Estados
e Municípios brasileiros, ainda sob as mesmas máscaras das mentiras que
aprenderam com a ditadura. Aqui no Centro Oeste jagunços, coronéis e assassinos
poluem o ambiente político e social. Goiás é gritante exemplo disso.
As eleições desse ano são tentativas de ressuscitar as trevas
de 1º de abril de 1964. Inclusive, pessoas outrora ativistas do bem e da
justiça se transformaram em covardes servidoras da mentira e do jogo velhaco de
interesses da classe dominante. Outra mentira que segue em campo é de que a
política é suja e corrupta. Tal falso princípio é ótimo para os amantes da Casa
Grande, que adoram usar o poder para favorecer seus negócios escusos, os
negócios do mercado corrupto e criminoso.
O moralismo farisaico campeia hoje com a mesma força a partir
do golpe fascista de 1964. Os que falam e berram por moral são os mais
desonestos, fanáticos, intolerantes e fundamentalistas. Estes nunca historicamente
se moveram para crescer, para mudar de ideia, para amar o próximo e para ajudar
o País. São eternos pescadores de água turvas.
Enfim, meu querido amigo e sempre Padre Charles, nossa
conjuntura indica que precisamos de muito mais avanços e aprofundamento de
reformas. As causas das injustiças que se robusteceram com a mentira de 1º de
abril de 1964 continuam intactas.
Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz.
Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e republicano, em
quaisquer situações.
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