Existe justificativa para a violência política?
Fernando Frazão/ABr
Black Blocs concentrados em frente ao prédio do Tribunal de Justiça do Rio, em setembro de 2013
O argumento dos Black Blocs parte de pressupostos
equivocados, entre os quais o de que a agressão contra a polícia criará
benefícios democráticos
Por Leonardo Avritzer no site Carta Capital
Desde junho de 2013, o Brasil tem vivido uma
experiência inédita em sua história política recente: a apologia e uso da
violência em atos e manifestações públicas vinda dos próprios manifestantes.
Ao mesmo tempo, assistimos pasmos a um aumento da
violência em público sem precedentes: o incêndio de ônibus no Rio de Janeiro e
em São Paulo, as expressões bárbaras de violência em alguns presídios no
Maranhão, atos de violência no aniversário da cidade de São Paulo e em diversos
episódios ligados ao esporte, como a partida que decretou a queda do Vasco da
Gama para a Série B e as comemorações pela vitória do Cruzeiro no Brasileirão
em Belo Horizonte. O rojão que matou o cinegrafista da TV Bandeirantes representa
o ápice desta trajetória. Todos estes atos apontam a uma direção problemática
que merece ser questionada: a profunda legitimação social da violência na
sociedade brasileira.
Como sabemos, os principais episódios coletivos
que marcaram a sociedade brasileira no final do século XX foram não violentos.
As manifestações pela democracia durante o final do regime autoritário, as
chamadas “Diretas Já”, assim como as manifestações pelo impeachment do
ex-presidente Collor foram manifestações pacíficas sob o ponto de vista dos
manifestantes.
Mesmo quando tomamos como exemplo o MST e a sua
atuação recente no Brasil, a violência constitui uma dimensão complementar.
Esta não é a atitude dos chamados “black blocs”, cujo centro da ação consiste
na própria violência. Ou seja, a ideia por eles defendida é que a violência é o
núcleo da sociedade (vide a página “black bloc Brasil”, no qual todos os posts
são sobre violência). A pergunta que deve ser feita é: existe uma justificativa
aceitável para a violência política?
Para responder a esta pergunta vale a pena
distinguir entre desobediência civil e violência. O filósofo norte-americano
Henry Thoreau, principal clássico da ideia de desobediência civil, a justificou
de duas maneiras: em primeiro lugar, para Thoreau, o governo da maioria não
pode significar que todas as formas de ação sejam decididas pela maioria e
impliquem na obediência, especialmente porque não existe uma identidade entre
maioria e verdade.
Outras concepções de política defendem o direito
de se expressar ao largo das concepções da maioria no governo democrático.
Assim, a minoria, quando não concorda com o governo, tem direito a não
obedecê-lo. Mas Thoreau, um liberal quase anarquista, ia mais longe. Para ele,
a única obrigação do indivíduo é assumir a suposição de que sua ação, em cada
momento, está correta. Deste modo, Thoreau estabelece a possibilidade de que o
indivíduo em uma democracia, por discordar das concepções da maioria, possa
decidir não respeitar a normatividade vigente e desobedecê-la. A questão, no
entanto, é a seguinte: quais meios são lícitos no processo de desobediência
civil?
A questão da pacificação da política foi uma das
grandes questões do século XX e recebeu respostas centradas no monopólio
estatal do exercício da violência. O sociólogo alemão Norbert Elias ofereceu a
resposta mais consistente igualando a possibilidade da política à pacificação
do espaço público. Assim, a política não poderia ser exercida por meio da
violência porque ela supõe a sua suspensão pelo Estado moderno. Não é possível
afirmar que as sociedades democráticas formadas a partir da segunda metade do
século XX seguiram a lógica pensada por Elias, mas é possível afirmar que
presenciamos fortes elementos de pacificação da vida política se pensarmos nas
manifestações de maio de 68, nas manifestações contra a guerra do Vietnã e nas
recentes manifestações na Europa e nos Estados Unidos contra a crise econômica
de 2008 até aqui. Todos estes movimentos foram amplamente pacíficos no sentido
de não advogarem a violência e não fazerem a sua apologia.
As recentes manifestações no Brasil no mês de
junho não seguiram este padrão e vale a pena se perguntar por quê. O Brasil tem
o seu processo de formação marcado pela violência contra os setores populares e
não foi capaz, nestes 100 anos de República, de pacificar o seu espaço
político. Pelo contrário, os regimes autoritários que dominaram o século
republicano só há pouco tempo saíram da cena política; estes se caracterizaram
por uma ação policial fortemente violadora dos direitos humanos.
Nas últimas décadas o Brasil passou por grandes
reformas democratizantes, mas, não por acaso, praticamente nada ocorreu em
relação à diminuição da violência impetrada pela polícia em relação à população
de baixa renda. Ela é presa sem acusação formal, sofre violência e casos como o
do desaparecimento do pedreiro Amarildo ou do assassinato do menino Douglas são
a marca registrada da política de segurança pública no Brasil.
Nas recentes manifestações, vimos a Polícia
Militar atuar na repressão das manifestações com táticas claras de guerra,
fazendo uma repressão indiscriminada. A tática usada contra os manifestantes,
na verdade, foi uma derivação daquilo que é feito cotidianamente nas favelas
das grandes cidades brasileiras. Assim, podemos afirmar que se a tese de
Norbert Elias sobre a pacificação constitui uma idealização: ela também se
aplica diferenciadamente para os diversos países. O Brasil ocupa, assim, uma
posição de destaque entre aqueles que não foram capazes de pacificar o espaço
público.
Neste contexto, obviamente, movimentos como os
“black bloc” adquirem uma pseudo-legitimidade por contraste. São estas as
justificativas que temos ouvido ao extremo nos últimos meses no Brasil: “se o
Amarildo sumiu, então...” ou “Se a Polícia Militar do Rio reprimiu as
professoras, então...”
Frases assim são equivocadas porque operam com
dois pressupostos igualmente errados: de que não é possível controlar e
pacificar a polícia ou de que a violência contra a polícia pode gerar algum
benefício para a ordem democrática. Ambas as suposições são absolutamente
equivocadas. O que está colocado no Brasil hoje é uma ampla democratização das
polícias que viabilize a diminuição da violência contra os setores populares.
Apenas assim o Estado brasileiro terá a capacidade de colocar na ordem do dia a
diminuição da violência em todos os setores da vida social.
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