“Os 42 anos mais sórdidos do catolicismo”
Teólogo revela como papas Ratzinger e Wojtyla reintroduziram a
Inquisição, perseguiram divergentes e tornaram quase impossível
renovação da Igreja
Tradução: Gabriela Leite
Desde que o Papa Bento XVI formalmente se retirou, na
quinta-feira, as especulações passaram a ser sobre quem vai
substitui-lo. Na quarta, Bento deu um adeus emotivo em sua última
audiência geral, dizendo que compreendia a gravidade de sua decisão de
tornar-se o primeiro pontífice a renunciar, em um período de cerca de
600 anos. Com 85 anos de idade, apontou sua saúde frágil como razão para
a partida. Dirigindo-se a cerca de 150 mil fiéis na Praça de São Pedro,
disse que está renunciando pelo bem da Igreja.
O mandato do papa Bento foi marcado por muitos escândalos, talvez
mais notadamente por sua postura diante dos abusos sexuais. Há alegações
de que ignorou ao menos um caso assim, quando era cardeal. Documentos
mostram que, em 1985, o estão cardeal Ratzinger adiou esforços para
afastar um padre condenado por abusar de crianças. Enquanto isso, Bento
supervisionou, no ano passado, uma sentença do Vaticano segundo a qual o
maior e mais influente grupo de freiras católicas norte-americanas
sofria “sérios problemas doutrinários”, por ter questionado os
ensinamentos da Igreja sobre pontos como homossexualidade e a proibição
das mulheres exercerem o sacerdócio. Mais recentemente, novas fontes
italianas revelam que três cardeais foram investigados por terem vazado
documentos que mostram a corrupção sem limites nos postos do Vaticano.
Para saber mais, fomos a San Francisco, onde entrevistamos o teólogo MatthewFox.
Ele é autor de mais de vinte livros, o mais recente dos quais é “The
Pope’s War: Why Ratzinger’s Secret Crusade Has Imperiled the Church and
How It Can Be Saved” (tradução livre: “A guerra do Papa: Por que a
cruzada secreta de Ratzinger ameaçou a Igreja e como ela pode ser
salva”). Fox é um ex-padre católico, que foi primeiro impedido de
ensinar a Teologia da Libertação e Espiritualidade da Criação pelo então
cardeal Ratzinger. Mais tarde, foi expulso pela Ordem Dominicana, à
qual pertenceu por 34 anos. Hoje é padre na IgrejaEpiscopal. Eis sua entrevista:
Amy Goodman: Bem vindo ao Democracy Now! Você pode começar respondendo sobre a renúncia do Papa e seu significado?
Obrigado. Eu realmente aprecio o jornalismo de vocês. Ele significa muito, para muitos de nós. Penso que eu vou acreditar na palavra do Papa, quando ele diz que
está cansado. Eu estaria cansado também, se tivesse deixado atrás de meu
mandato tanta devastação, como ele fez, primeiro como inquisidor-geral
durante o papado anterior. Bento trouxe de volta a Inquisição. É verdade
que fui um dos teólogos expulsos por ele, mas relaciono outros 104 em
meu livro, e a lista continua crescendo. É assim que a História vai
lembrar deste homem: como quem trouxe a Inquisição de volta, o que é o
completo oposto do espírito e dos ensinamentos do Segundo Conselho do
Vaticano. Portanto, acredito realmente que o Papa está deixando seu
posto porque não o suporta mais.
O Vaticano tornou-se um ninho de serpentes. Como teólogo, vejo o
trabalho do Espírito Santo em tudo isso. A Igreja Católica como a
conhecemos, a estrutura do Vaticano, está obsoleta. Estamos nos movendo
para além dela. O que está ocorrendo é doentio e me refiro, por exemplo,
à proteção dos padres pedófilos. Você pode ver este fenômeno em muitos
lugares: com o Cardeal Mahony em Los Angeles; o cardeal escocês que
acaba de renunciar; o Cardeal Law, que foi elevado após ter saído de
Boston, promovido para dirigir uma basílica do século IV, em Roma; e o
próprio Papa, segundo informações recentes.
Estamos tomando conhecimento das coisas horríveis que ocorreram em
uma escola para surdos em Milwaukee, onde mais de 200 garotos, garotos
surdos, foram abusados por um padre, e Ratzinger sabia disso. O Padre
Maciel, que era tão próximo do último Papa que o levou para passeios de
avião, abusou de vinte seminaristas; tinha duas esposas e abusou de
quatro de seus próprios filhos. Ratzinger soube sobre esse caso por dez
anos. Os documentos estavam em sua mesa, e ele não fez nada até 2005.
A história e a bajulação dos papas, que chamo de papolatria, não vão
encobrir os fatos. Foram os 42 anos mais sórdidos do catolicismo, desde o
Borgias. Acho que é algo realmente relacionado ao fim dessa Igreja,
como a conhecemos. Acredito que o protestantismo também necessita de um
reinício. Acho que o cristianismo pode voltar mais atrás, e se aproximar
dos ensinamentos de Jesus, um revolucionário do amor e da justiça. É
disso que se trata. E é por isso que tem havido uma resistência tão
feroz, na ala direita. A própria CIA esteve envolvida, especialmente com
o Papa João Paulo II, no esmagamento da Teologia da Libertação em toda a
América do Sul, substituindo líderes heróicos, inclusive bispos e
cardeais, por integrantes da Opus Dei, uma organização fascista. Tudo
reduziu-se a uma questão de obediência: não se trata de ideias ou
teologia. Eles não produziram um teólogo em quarenta anos. Produziram
advogados canônicos e pessoas que se infiltram onde o poder está: na
mídia, na Suprema Corte, no FBI, na CIA e nas finanças, especialmente na
Europa.
Juan González: Em alguns de seus escritos, você sustenta que, no
fundo, os dois últimos papas — Bento XVI e João Paulo II – lideram um
cisma e que, na realidade, agiram para burlar as decisões do Concílio
Vaticano II. Você poderia detalhar este movimento histórico?
O Papa João XXIII convocou o concílio no começo dos anos 1960. O
encontro reuniu todos os bispos do mundo e todos os teólogos, muitos dos
quais haviam vivido sob fogo no papado anterior, de Pio XII. Foi
certamente um movimento de reforma. Inspirou os mais pobres,
especialmente na América do Sul. Depois deste concílio, o movimento da
Teologia da Libertação e a opção preferencial pelos pobres decolaram,
criaram comunidades de base. Eram um novo jeito de fazer a Igreja, onde
todos tinham voz, não apenas as pessoas no altar.
Esta aproximação não-hierárquica ao cristianismo e ao culto, muito
mais horizontal e circular, foi uma grande ameaça a certas pessoas em
Roma — ameaçou ainda mais à CIA. Dois meses depois de elito, o
presidente Ronald Reagan convocou uma reunião de seu Coselho Nacional de
Segurança em Santa Fé, Novo México, para discutir um ponto específico:
como destruir a Teologia da Libertação na América Latina. Concluíram que
não poderiam destruir a Igreja, mas conseguiriam dividi-la. Foram ao
Papa. Deram imensas somas de dinheiro ao sindicato Solidariedade, na
Polônia, ao qual ele estava ligado. E em troca, conseguiram permissão ou
— se você prefere assim — o compromisso do papado em destruir a
Teologia da Libertação. Isso está muito documentado. Por exemplo, por Carl Bernstein, num artigo de capa da revista Time,
onde ele cria algo como uma hagiografia de Reagan e do Papa juntos.
Bernstein foi muito ingênuo sobre o que realmente estava acontecendo na
própria Igreja. Parte importante do Concílio Vaticano II era declarar a
liberdade de consciência, considerá-la um direito de todos os cristãos.
Tudo isso foi destruído pelo papa João Paulo II e pelo cardeal
Ratzinger.
As reformas do Concílio Vaticano II estavam se concretizando. Falo de
um cisma porque, na tradição católica, um Concílio é superior a um
Papa. Mas nos últimos 42 anos, os dois últimos papados foram desfazendo
todos os valores que o Vaticano II sustentou. É isso que as freiras
estão sofrendo agora. Assim como o Vaticano atacou 105 teólogos, agora
acusa as freiras de, digamos, não participar da Inquisição. E Deus
abençoe essas freiras, as NunsontheBus.
Muitos de nós as conhecemos porque elas têm estado nas linhas de
frente, sustentando os valores do Vaticano II, especialmente os de
justiça e paz, e trabalhando com os marginalizados.
Amy Goodman: Matthew Fox, por que você foi expulso da Igreja
Católica? Você diz que é por causa da Teologia da Libertação. Explique.
Bem, primeiro eu fui silenciado por 14 anos, por Ratzinger. Em
seguida, tive permissão para falar de novo e então, três anos depois,
fui expulso. Mas ele construiu uma lista de reclamações. Primeira: eu
seria um teólogo feminista. Não imaginava que este fato pudesse
constituir uma heresia…
Número dois, eu chamava Deus de “Mãe”. Bem, provei que todos os
místicos medievais chamavam Deus assim; e que a Bíblia também o faz,
apesar de forma menos frequente.
Número três, eu prefiro a expressão “bênção original” a “pecado original”. Escrevi um livro chamado Original Blessing
(“Bênção Original” em inglês), no qual provo que nem Jesus, nem judeu
algum, jamais ouviu falar de “pecado original”. Como você pode construir
uma igreja, em nome de Jesus, a partir de um conceito que é do século
IV d.C.
Sabe o que mais aconteceu no século IV, além da ideia do pecado
original? Foi a conversão do Império Romano ao catolicismo. Se você
passa a comandar um império, o pecado original é um ótimo dogma a
difundir. Faz com que todos fiquem confusos sobre por que estão aqui.
Nessa condição, é muito mais fácil colocá-los sob comando.
Acusaram-me por não condenar homossexuais, o que é claro que não
faço. Obviamente Deus quer homossexuais, ou não haveria entre 8% e 10 %
da população de todo o planeta com essa graça especial.
Disseram que trabalho muito perto dos índios norte-americanos. Bem,
realmente trabalho com eles. Aprendi muito com os professores índios e
seus rituais, tais como saunas, danças do sol, busca de visões. Não sei
se isso é heresia também — eu não sei o que significa “trabalhar perto
demais”.
Essas eram algumas das objeções. E realmente, nenhuma delas se sustentava. São testes de Rorschach
sobre o que apavora o Vaticano. E acima de tudo, é claro, sobre
mulheres e sexo. Essa é a agenda. Em qualquer situação onde há
fundamentalismo e fascismo, existe controle. É por isso que o Vaticano, o
Taliban e o pastor Pat Robertson
têm algo em comum: estão todos apavorados com a possibilidade de trazer
a divindade feminina de volta, e com isso, é claro, os direitos iguais
para as mulheres.
Juan González: Além da pedofilia, que tem sacudido o Vaticano e
toda a Igreja, há também os escândalos de corrupção no próprio Vaticano.
Fala-se da denúncia produzida por um grupo de cardeais, que
investigaram parte da corrupção mas não vão divulgar nada até o próximo
Papa ser nomeado. Você sabe quanto qualquer desses temas tem a ver com a
renúncia de Bento XVI?
Tenho certeza que tiveram. Eu fui informado de que ele recebeu a
denúncia, examinou-a e, seis horas depois, anunciou que estava
renunciando. Pôs-se a salvo e encarregou o próximo papa de lidar com o
tema. Penso ser muito claro que há uma conexão. Há muito mais nos
bastidores do que a imprensa já anunciou, posso assegurar.
Quando Ratzinger fez-se papa, fui a Wittenberg e preguei as 95 Teses
[de Martinho Lutero] na porta. Um ano e meio atrás, estava em Roma, e
as traduzi para o latim — quer dizer, italiano, e entreguei-as para a
basílica do cardeal Law numa manhã de domingo. Foi muito interessante.
Um homem de 40 anos de idade veio a mim, um romano. Ele me disse, muito
simplesmente: “Eu costumava me dizer um católico. Agora, só me chamo de
cristão”. Foi um golpe para mim. Logo embaixo do nariz do papa,
italianos, também, estão começando a compreender a verdade, estamos em
um ótimo momento histórico. Uma instituição ocidental de 1800 anos está
derretendo diante dos nossos olhos. É doloroso e feio. Por outro lado, é
também um momento de avanço e para apertar o botão de reiniciar no
cristianismo, retornando à mensagem realmente poderosa de Jesus e seus
seguidores através dos séculos: os místicos e os profetas.
Susan Sontag define “fascismo” como violência institucionalizada. Os
católicos têm passado por violência institucionalizada há 42 anos.
Pergunte a qualquer um desses teólogos que foram afastados de seu
trabalho. Alguns morreram de ataque cardíaco. Outros, na pobreza das
ruas, porque não conseguiram arrumar emprego. Mas, é claro, fale com os
jovens que foram abusados por padres e acobertados por Ratzinger, que
“protegeu” a instituição às custas de cada uma dessas crianças.
Juan González: Vamos às especulações sobre quem vai ser o sucessor
do Papa Bento XVI, Fala-se muito sobre a possível escolha, pela
primeira vez, de um papa do hemisfério sul. Você ve alguma possibilidade
de mudança real e substantiva na política da Igreja, seja quem for seu
sucessor?
É triste dizer isso, mas eu não acredito, porque todos os que vão
votar foram nomeados com aprovação do Ratzinger. Pensam como ele. O
emburrecimento da igreja veio com toda essa crise pedófila. Quando você
não tem líderes inteligentes e com consciência por 42 anos, mas apenas
gente que diz sim, não é possível responder de modo inteligente à crise
que emerge quando se acha um pedófilo em seu meio. Há um arcebispo
norte-americano — não vou nomeá-lo – que, vinte anos atrás, chorou na
presença de um amigo meu e lhe disse: “Não há um único bispo nomeado nos
últimos vinte anos que eu consiga respeitar”. Bem, agora nós podemos
dizer 42 anos.
Por isso, francamente, poucos nomes me vêm à cabeça. Existe este na
África, que por azar é um completo homofóbico, e está endossando todas
as leis recentes de violência homofóbica na África. É o chefe da
Comissão de Justiça e Paz no Vaticano. Seria de esperara que não
chegasse tão longe. Existe o cardeal austríaco, que é dominicano e
mostrou um pouquinho de independência uma ou duas vezes. Há esse
O’Malley, de Boston, que é franciscano, e portanto não quer ser Papa.
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