O maior patrimônio do Brasil: o seu povo
Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
01/03/2013
Nossa história pátria vem marcada por uma herança
de exclusão que estruturou nossas matrizes sociais. Criou-se aqui, um software
social caracterizado pelo mais recente analista de nossa formação histórica,
Luiz Gonzaga de Souza Lima, como um Estado Econômico Internacionalizado, numa
palavra, a Grande Empresa Brasil, produtora de bens para as grandes potências
coloniais e hoje globais (A Refundação do Brasil, 2011). Tal fato tem onerado
poderosamente a invenção de uma nação soberana. Reparando bem, fomos vítimas de
quatro invasões sucessivas que inviabilizaram, até recentemente, um projeto
nacional autônomo, aberto às dimensões do mundo.
A primeira invasão, fundacional, ocorreu no século
XVI com a colonização portuguesa. Índios foram subjugados ou eliminados,
milhões de escravos foram trazidos de África como carvão para a máquina
produtiva.
A segunda invasão se deu no século XIX. Milhares de
emigrantes europeus para cá, aliviando a pressão revolucionária que pesava
sobre as classes industriais. Foram vistos pelos que aqui já estavam como os
novos invasores. Seus descendentes, logo incorporados ao projeto das classes
senhoriais, criaram zonas prósperas, especialmente no Sul.
A terceira invasão ocorreu nos anos trinta do
século passado e foi consolidada nos anos sessenta com a ditadura militar.
Introduziu-se uma modernização conservadora mediante a industrialização de
substituição. Ela se deu em estreita associação com capital transnacional e com
as tecnologias importadas. Por ela se firmou a lógica de nosso desenvolvimento
dependente, voltado para fora, produzindo aquilo que os outros queriam e não o
que o povo precisava. Mas criou-se um Estado nacional forte que hegemonizou
esse processo.
Em tensão dialética com este esforço, elaborou-se
também um outro projeto representado pelas massas emergentes da cidade e do
campo. Visavam outro tipo de democracia que devia tornar possível o
desenvolvimento com inclusão e justiça social. Para derrotar esta proposta, as
classes proprietárias deram em 1964 um golpe de classe, utilizando o braço
militar. Como consequência, o Brasil mergulhou decisivamente na lógica
excludente do capitalismo transnacionalizado.
A quarta invasão se deu com a globalização
econômica e com o neoliberalismo político a partir da inovação tecnológica dos
anos 70 do século XX e da implosão do socialismo com a consequente
homogeneização do espaço político-econômico, ocupado pelo neoliberalismo. Fomos
invadidos pela racionalidade da globalização econômica e pela política
neoliberal do Estado mínimo e das privatizações.
As teses neoliberais, no entanto, foram refutadas
pela devastadora crise econômico-financeira de 2008, atingindo o coração do
sistema mundial e pondo todas as economias nacionais em grandes dificuldades.
Nós, graças às reformas, algumas feitas antes, mas, consolidadas pelo Governo
Lula/Dilma Rousseff, temos podido resistir. Estamos conseguindo um fato
inédito: manter o nível de emprego e garantir um crescimento sustentado embora
pequeno.
Entretanto, na nova distribuição internacional de
poder, o Brasil e, de resto, a América Latina estão sendo neocolonizados.
Reservam-nos o lugar de exportadores de matéria prima e de commodities para o
mercado mundial, criando obstáculos à inovação tecnológica que confere valor
agregado aos nossos produtos. Obrigam-nos a ser a mesa posta para as fomes do
mundo inteiro e a permanecer "deitado eternamente em berço esplêndido”.
A nova consciência social, no entanto, a partir dos
meados do século passado, conseguiu criar uma vasta rede de movimentos sociais.
Ela se afunilou numa força política com a criação do PT e de outros partidos
com raízes populares. Com a vitória de Lula e depois de Dilma Rousseff se
instaurou um outro sujeito de poder e propiciando o maior evento de inclusão
social dos destituídos de nossa história.
Este fato cria a oportunidade para relançar a ideia
de uma reinvenção do Brasil sobre outras bases que não são das elites
proprietárias. No centro está o povo.
Apesar de ter sido considerado, tantas vezes,
jeca-tatu, carvão para nosso processo produtivo, joão-ninguém, o povo
brasileiro nunca perdeu sua autoestima e o encantamento do mundo. Talvez seja
esta visão encantada do mundo uma das maiores contribuições que nós brasileiros
podemos dar à cultura mundial emergente, tão pouco mágica e tão pouco sensível
ao jogo, ao humor e à convivência dos contrários.
O antropólogo Roberto da Matta enfatizou o fato de
o povo brasileiro ter criado um patrimônio realmente invejável: "toda essa
nossa capacidade de sintetizar, relacionar, reconciliar, criando com isso zonas
e valores ligados à alegria, ao futuro e à esperança” (Porque o brasil é
Brasil, 1986,121)
Alimentamos sempre um horizonte utópico promissor:
viver neste mundo não significa ser prisioneiros das necessidades, mas ser
filhos e filhas da alegria.
[Leonardo Boff escreveu: Depois de 500 anos: que
Brasil queremos? (Vozes 2000)]
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