Caro Sinomar Lopes
Hoje recebemos aos prantos e sob muito sofrimento a notícia da
morte cerebral de tua filhinha Kerolly. As fotos dela mostram uma guria linda e
corajosa.
Compartilho contigo e com tua família a solidariedade nesse
momento de duas terríveis dores: uma a da perda de tua filha que, segundo teu
depoimento pela mídia, amavas muito e a outra a da culpa por não atenderes aos
seus apelos e de sua irmã para que te retirasses do ambiente quente onde um
homem apontava um revólver engatilhado contra ti.
Aqui não te julgarei como não julgarei o senhor Georgio
Araújo de Sousa, que inopinadamente disparou três tiros em direção a vocês, um
acertando uma das pernas de Kerolly e o outro fulminando-lhe o crânio, fatal para
ela.
Porém, querido pai, precisamos tirar algumas lições desse
triste episódio, jamais esquecido por ti.
A
violência destrói
As notícias apoiadas pelas imagens indicam que insististe no enfrentamento
ao Georgio. Pela agitação com que caminhavas indo e voltando sobre a calçada do
restaurante de Georgio e ao adentrares iradamente no recinto demonstravas que
eras intensamente conduzido pela raiva, pela revolta e pelo ódio, talvez até
com razão, não sei. Ora, raiva, ódio e, principalmente, revolta, são
sentimentos carregados de energia, que pode ser carreada para boas causas,
quando bem e inteligentemente usada.
Não se sabe claramente o que despertou o poder da raiva em ti
e o que mobilizou tamanho ódio em Georgio, ao ponto de levá-lo a atitude tão
violenta e brutal, comparada a um tsunami descontrolado ao disparar 3 tiros em
direção a um pai e duas filhas desesperadas. Há muita irracionalidade nas
atitudes dos dois homens adultos, que custou a vida de uma criança belíssima e
promessa de futuro melhor para a humanidade.
Na verdade, Sinomar, encontra-se clima propício à violência
em todos os setores dessa cidade e nas duas classes que a fazem girar. Por
pouco as pessoas explodem e saem distribuindo pauladas, socos, facadas e tiros
para todos os lados. Neste último sábado fui ameaçado assim por ninguém menos do
que um médico. Estacionei por poucos minutos à frente de sua clínica, já
fechada e sem movimento por ser sábado, apenas para aguardar uma pessoa que fora à farmácia há 30 metros do local. O cidadão
aproximou-se com tanto despropósito, grosseria, palavrões e atitude egoísta que
parecia querer me atirar. Consegui dizer-lhe
que sua atitude era comandada por puro egoísmo de um integrante da classe
dominante que se acha dona do mundo. Identifiquei-lhe que dava para interpretar
seu elevado egoísmo nos termos que empregou nos xingamentos ao dizer esta é a “minha
calçada”, essa é a frente da “minha casa”, essa é a “minha rua” e na sua falta
de respeito ao me abordar com tanta arbitrariedade ao invés de educadamente se
disponibilizar a ajudar, sugerir e encaminhar solução para o que ele julgava
ser enorme problema. Resolvi, depois de ajudá-lo a pensar, me retirar de
circuito envenenado e propício para a briga. Foi muito mais barato me retirar.
Há quem exclame: poxa, o Sinomar enfrentou Georgio por causa
de uma pizza?! O Georgio apertou 3 vezes no gatilho de uma arma mortal por
causa de ofensas verbais de Sinomar?! Aparentemente esses foram os motivos que
custaram a vida de Kerolly. Os inquéritos, denúncias e julgamentos mostrarão fatores
que ainda não vieram à tona. Porém, no fundo, as grandes causas que explodem em
outras violências de pessoas matando seus semelhantes estão num modelo de sociedade
e de cidade construído sobre as bases da violência e da injustiça. Nossas
cidades são extremamente violentas e seus cidadãos radicalmente desrespeitosos
e tendentes à brutalidade; nossa Goiânia é noticiário nacional e mundial pelo
seu alto clima de violência. Outro dia em minha caminhada matinal me deparei
com dois mendigos em briga furiosa um com o outro, mais precisamente, um homem
mendigo aos gritos ao ponto de quase socar uma mulher mendiga. Ao interferir
considerei com elas a necessidade de se unirem para brigar contra os
verdadeiros culpados pela situação deles. As causas são muitas: a concentração
de renda que cumula de privilégios pessoas de um lado e um abismo de carências,
do outro. Do lado do abismo as pessoas se desgastam física e emocionalmente
para suprir suas necessidades básicas. A estrutura afetiva desorganiza-se e
perde a percepção das verdadeiras causas e os verdadeiros culpados pelo caos
injusto. Daí muitos despejam raiva e ódio no próximo, ao alcance dos sentidos.
A falta de policiamento adequado e segurança policial bem distribuída na
cidade, com uma polícia republicana e não comprometida com a corrupção, que
proteja preventivamente a população é fator que favoreceria a paz social. Mas
não, depois da guerra derramar sangue inocente é que se ouvem as sirenes de uma
polícia atrasada sobre os fatos e no auxílio às pessoas.
Kerolly é uma heroína
da paz
As imagens do martírio de Kerolly rodaram inúmeras vezes nos
canais de TV aqui de Goiânia, alguns deles as usaram abusivamente para encantar
audiências em cima do sangue dessa nossa irmãzinha. Impressionante o quanto ela
gritava ao pai e se agarrava em suas pernas insistindo que ele fosse embora
dali. Quando Geórgio enlouquecido de ódio alvejou o Sinomar, sem se importar
com a proteção que as duas gurias tentavam dar ao pai, Kerolly também não se
importou em entregar a vida depois de tanto implorar que o pai saísse dali e
que Geórgio não atirasse nele.
Numa avaliação rápida e pelos depoimentos que os teusvizinhos, Sinomar, deram à mídia televisiva, tu és um pai amoroso. Há amor na tua relação
com as filhas. A disposição das duas em proteger o pai e de até de serem
atingidas pelas balas do ódio denota-se que elas também amavam muito e
radicalmente a ti, como pai. Ora, crianças e adolescentes somente amam quando são amadas.
O triste fato que resta é que Kerolly morreu vítima de duas balas
do ódio mal conduzido e assassino. Kerolly morreu por amor, apesar de seus apenas 11
anos de idade. Kerolly morreu como mártir e como heroína, na luta contra o ódio
irracional de Geórgio e contra a tua intransigência, Sinomar.
Numa reflexão em lágrimas que faço agora penso que quem ama
entrega sua vida pelo outro, mesmo que tenha que se deparar com a morte. Quem
ama luta pelas pessoas a quem ama e se prontifica a todos os sacrifícios. Quem
ama compartilha seu sangue e não mede os riscos que corre, sem economizar tudo
o que tem. Quem ama entrega-se, mesmo quando sua luta não é considerada em vida,
pressente que a morte da vida que compartilha falará para sempre. Este é o caso de Kerolly.
Lamentavelmente nossa civilização dita cristã matou o sentido
da entrega pelo outro. O capitalismo que a todos suga, esgota as possibilidades
de amar. A barbárie que mata aprisionou Jesus, aquele que deu a vida por todos e
ensinou os seus discípulos a dá-la, também. Tristemente as igrejas viraram túmulos do Jesus
que nos ensinou a amar como Kerolly, que se deixou imolar para que
continuasses a ser pai de sua irmã. Jesus virou balcão de negócios, despojado de
todo o sentido do amor que leva à luta, mesmo que se morra pelos outros. Em seu nome há quem explore os pobres.
Faço votos, querido Sinomar, que tuas dores se aliviem em
face da grandeza de Kerolly, tua filhinha amada que deu a vida por ti. Busca te
concentrar no exemplo de tua filhinha: Kerolly é uma mártir e uma heroína da paz. Ela ensina
que para se chegar à paz é preciso enfrentar o ódio, balas e até a indesejada
morte. Keroly é um anjo que pairará eternamente sobre Goiânia e o mundo a gritar
pelo caminho da paz.
Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz.
Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e republicano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seus comentários serão publicados. Eles contribuem com o debate e ajudam a crescer. Evitaremos apenas ofensas à honra e o desrespeito.