Queridíssima Profª Maria de Fátima
Outro dia na cidade de Pirinópolis o Secretário Municipal para Assuntos Interaciais de Goiânia, o meu amigo José Eduardo, se aproximou de mim para contar tua história, querida Maria. Apenas confirmou o que eu já sabia em detalhes.
Tua origem te linka à história da maioria de nossos negros e negras brasileiros/as, marcadamente sofrida. Emergiste do Serrado e da roça praticamente escrava aqui do interior de Goiás, depois de uma migração lá das Minas Gerais. Empunhaste muita inchada na capina agrícola. Contaste-me essa história sem nenhum romantismo, falando da dureza da vida rural, em cujo espaço as crianças não vivem a infância, sempre trabalhando duramente sob a pressão dos próprios pais, que internalizam a escravidão imposta pelos proprietários das terras.
Vindo para a cidade trabalhaste como empregada doméstica, telefonista e, por seres muito bonita, chegaste a enfrentar desfiles como modelo, ainda que explorada por seres negra. Foste assentada em terrenos baldios com tua família em busca de moradia na periferia de Goiânia. As tensões oriundas do enorme conflito existencial e social de tua família quase te tiraram a vida muito cedo. Militaste no movimento negro, onde te deparaste com paralelismos, racismos, disputas entre lideranças do movimento, numa reprodução do que o capitalismo faz com seus oprimidos e explorados.
Lutaste tanto que não vias solução para o problema de moradia de teus pais, num país afundado em crises econômicas geradas pela dependência do imperialismo, reforçadas pelo nefasto neoliberalismo, pai do desemprego, da miséria e da exclusão dos trabalhadores. A partir daquele contexto conseguiste, como muitas brasileiras, viajar para a Europa em busca de trabalho e de um “pé de meia”. Moraste e trabalhaste em Paris, França, e em Genebra, Suiça. Experimentaste na pele, mais uma vez, a descriminação racista e colonial. Sofreste de saudades do Brasil. Por seres negra bonita recebeste muitas “propostas” para te prostituires com o objetivo de ganhar muito dinheiro. Os racistas, machistas e colonialistas vêm a mulher brasileira com esse olhar torcido e usurpador. Conheço esses tipos. São brutais e de visão nazista. Mas, como verdadeira mulher brasileira resististe a bandalheira e retornaste vitoriosa ao Brasil.
Aqui de retorno, dominando a língua francesa, que falas com maravilhosa pronúncia, lecionaste nossos irmãos brasileiros que dela precisavam. Com sacrifício prestaste vestibular na PUC daqui e fizeste um curso superior, cujos diplomas oficiais comprovam teus estudos. Ainda não satisfeita ingressaste num mestrado e o concluíste brilhantemente. Agora te preparas para o doutorado. Conseguirás vencer, querida. Não te vergas com os ventos da opressão e da discriminação. És mulher bonita, mas que transcendes a casca no mergulho mais profundo. Orgulho-me quando te vejo estudando, preparando aulas para os teus alunos dos cursos superiores onde lecionas. Dialogar contigo é um fascínio. Sabes ouvir e sabes falar. Teu francês é de pronúncia doce e clássica.
Pois bem, minha mestra e intelectual, convido-te para olharmos para o nascimento de Jesus. Há muitos pontos a escolher para esse olhar. Há o ponto das catedrais colônias, que eu abomino. Há o Jesus branco e colonial trazido pela igreja imperial para cá, que não me faz sentido. Esse Jesus nasce em presépio de faz de conta. Seu nascimento é o da realeza cujas botas e espadas esmagaram nossos indígenas e africanos. Não gosto dele. Causa-me náusea e repugnância. Para esse Jesus cantarão corais e óperas mantidos por banqueiros e ricos, que se nutrem do sangue dos que perambulam pelas ruas em Nova York e Atenas. Sobre ele falarão na meia noite em cadeia de rádio e TV, por meio da mesma mídia que cala o povo, mente e calunia sem provas, com o objetivo de destruir. Diante dele se curvarão em lágrima as damas que se não se comovem com os pobres de seus próprios países ricos, graças a ganância dos banqueiros e bandidos de colarinho branco. Em sua homenagem celebrarão missas e cultos sem povo e sem vida. Esse Jesus é feito à imagem e semelhança de seus idólatras. Os que o freqüentam fazem genuflexão diante de sua imagem folhada a ouro e desprezam os trabalhadores de quem roubam as riquezas e a vida. Não, querida Maria, esse Jesus do deus sol não dá. Esse não serve. Esse não presta. Esse mantem o “status quo” inamovível, com eles explorando e conosco explorados. Não, Maria, esse Jesus não me emociona. Morte a ele, como ao sistema dos que o defendem!
Convido-te a pegarmos outra carona com outro olhar que talvez nos mostre um pouco melhor do verdadeiro Jesus, apesar das interferências e ruídos da interpretação emanada da borrasca religiosa dos dominadores. Será fácil entenderes, já que moraste no Cerrado e trabalhaste como escrava juntamente com teus pais e irmãos. Leonardo Boff, também expulso pelos malfeitores adoradores do Jesus colonial e imperialista, disse que “todo o ponto de vista depende da vista do ponto”. Então, como diz a sumida Márcia, nosso ponto para vermos Jesus, te proponho, é o dos pastores das montanhas da Palestina. Lucas, talvez o verdadeiro ponto para nosso olhar através dos pastores cuidadores de ovelhas, conta que eles passavam as noites cuidando dos rebanhos que não eram seus. Eram espoliados, sem direito a ir às cidades, não participavam dos cultos religiosos porque eram mal vistos. Cheiravam mal e não se atinham a mandamentos. Eram considerados marginais porque marginalizados. A glória do Senhor, aquela que os poderosos não podiam contemplar, encheu seu contexto de novas possibilidades. Os “desgraçados” sem graça estofaram o peito de ousadia. Por bom momento o medo castrador do fundo da caverna da exclusão os achatou ao chão das montanhas. Mas o mensageiro ousado gritou-lhes: não tenham medo. Não tenham medo. Eu tenho uma grande e boa notícia para vocês. E lhes contou que Jesus nascera. Não o Jesus aquele acima que te descrevi. Não, nasceu o Jesus com cara de africano, com cara de palestino, refugiado, acampado entre os cavalos, vacas e bois. Seu berço não era de ouro como o daquele “branquelo” ao lado de Roma. A partir dessa experiência libertadora de Deus que se dá nas campinas, cheio de ousadia e de vida, os ex-medrosos se reúnem em assembléia para decidir o que fazer. Seu espaço era entre as montanhas e não os palácios dos exploradores, que gostam de confabular e arquitetar os golpes que massacram o povo. Desde a junção rica em debate, gritos, discordâncias e consenso mínimo decidiram marchar à Belém para “ver esse acontecimento...”.
Vês, querida mestra, os pastores se reúnem para decidir. Nesse ato quebram a lógica hegemônica diabólica dominante. Fazem a experiência do encontro, do debate, da democracia de classe, da decisão conjunta, por mais que se amedrontem e auto excluam-se. Dessa experiência de Deus e de organização propõem-se a “ver” “esse acontecimento”.
Esse olhar para o nascimento do Jesus das bibocas montanhosas nos “destemoriza”, nos ajuda a ver muito melhor nossa condição e as possibilidades se erguem da união. Tanto que eles se movimentam em direção ao evento Jesuino para conhecer por eles mesmos, imagino, sem a mediação da classe dominante e desumana. Intervêm diretamente e constroem novo olhar, nova experiência, nova vida, novo projeto.
Maria, somos cercados por tanta cegueira, tanto e desesperador medo, que desconcerta, que amarra, que afunda, que escraviza, que mata como se cada pessoa carregasse instalada em sua alma uma bomba que rebenta para dentro e funciona como trava e como cordas poderosas a enforcar as pessoas, que parecem gostar da tragédia da alienação. Mas, felizmente, graças a contradição que move os universos, há anjos que cantam que nasceu a libertação, que rebenta a salvação que cura, que soergue, que grita para olharmos, que enxerguemos, que vejamos, que conheçamos, porque o conhecimento não se reduz aos ditos sábios que dominam e massacram.
Duas coisas, para terminar, amada mestra Maria: o anjo, que age imanentemente e encharca nossa triste e medrosa realidade, ilumina-nos. Somos empurrados a nos transformarmos em anjos que provocam mudanças que libertem e ajudem a ver e a conhecer. Isso regurgita em muita alegria e dinamismo. Somente essa experiência vale a pena, porque a alma deixa de ser pequena.
Não te desejo esse feliz natal, cruz credo, de maneira nenhuma. Desejo-te o impacto com o evento Jesus que liberta e põe em marcha, a marcha dos que se movem e se libertam de todos os medos e cegueiras.
Quando vejo as denúncias contra os que destroem o povo revejo os pastores de Belém reunidos e em marcha à Belém. Quando vejo a juventude acampar em Nova York, em Atenas, em Brasília, em Santiago do Chile, na luta por mudanças e contra o reacionarismo, revejo os pastores de Belém. Quando soube que meus colegas professores e meus alunos se mobilizaram para me ajudar a realizar as cirurgias nos olhos, para romper a escuridão que me assustava e deprimia, revejo os pastores de Nazaré em marcha, desacomodados.
Nesse Jesus eu creio.
Beijos, Maria, negra bonita e poderosa.
Obrigado, Excelencia, por este texto: uma possibilidade para que eu me converta neste Natal.
ResponderExcluirCom admiração
Padre Antonio
Diocese de Itumbiara
Igreja Catolica Apostolica Brasileira
http://icabitumbiara.blogspot.com/
Caro Prof. Orvandil, maravilhoso o texto, um dos mais belos do teu blog. E que a forca que arrebenta o coracao dos revolucionarios e que os movem em forca transformadora, nao nesse Jesus piegas, proteja todas as Marias do nosso Brasil. As Marias indigenas, as negras, as mulheres empobrecidas, que nem contam no censo, porque nao sao vistas, nao sao notadas. Que cada uma delas enocontre a forca desconhecida da transformacao.
ResponderExcluirParabens Prof. pelo olhar. E que se existir algum Jesus, que ele vele por todas as Marias massacradas, esbofeteadas e as vezes nem vistas.
Parabens pelo texto e pelo olhar.
Estou lendo os assuntos de seu blog, estou gostando do que já li sobre a trejetória de Maria, mulher negra e linda e me encanto ao ler as colocação sobre neoliberais. Parabéns!
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