Minha
querida aluna Selenilde Ferreira de Moura
Fim de ano, fim de semestre, minha amiga. Momento
de vocês fazerem provas e de nós, professores, corrigirmos o que vocês nos dão
como respostas aos conhecimentos que tentamos construir juntos na caminhada
semestral.
Hoje uma colega tua me ligou para uma conversa
gostosa, rica em protestos e explicações sobre a nota que obteve em trabalhos e
prova que corrigi. Sinceramente, na ligação entendi o trabalho e a prova, muito
mais do que o que ela escreveu em ambos, cujas notas baixas retrataram imensas
dificuldades para construir raciocínios e expor conceitos. Ao final da ligação,
que transformei numa entrevista, disse-lhe que gostei muito da forma com que
falou comigo: firme, explicativa da luta travada para fazer seu trabalho e das
fontes consultadas, nada reveladas no que escreveu. Ao valorizar sua
ligação honesta e despida de malandragem para enrolar professor requalifiquei
sua nota.
Na verdade, Selenilde, termino o semestre tomado de
muita tristeza pelo que li nos trabalhos e provas da maioria de meus alunos.
Penso até que me entristeço muito mais do que eles com as notas baixas que
conquistaram.
Evidentemente que notas baixas em grupos grandes merecem
interpretação e análise. São fenômenos que funcionam como panos de um palco,
onde atuam causas dos efeitos produzidos.
Alunos que estudam à noite geralmente são vítimas
de profundas injustiças sociais, tanto as originárias de suas vidas quanto as
atuais condições oferecidas pelo maldito mercado de trabalho, onde pululam
todas as desumanidades possíveis: em forma de carga horária estafante, de
salários baixos, transporte de baixa qualidade, desrespeito aos que estudam,
sem consideração e investimento em seus potenciais para o tempo que carecem
para estudar etc. Muitos dos patrões e chefias dos jovens estudantes
universitários são despreparados, autoritários e incultos, por isso não
reconhecem valor nos estudos de seus trabalhadores. As empresas são movidas
apenas pela fome de lucro e não pelo interesse social e humano. Além de prestarem
péssimos serviços à sociedade não têm nenhuma visão social e humana para
compreender e estimular o crescimento de seus trabalhadores estudantes. As
escolas particulares são arcaicas, conservadoras e seus proprietários movem-se
pela ganância de lucro, o que não lhes permite reconhecer a educação como
processo social e como ferramenta importante para as transformações sociais.
Por isso, seus discursos são surrados em defesa da formação profissional de
meritocráticos para o mercado - aliás, esse nome funciona como cores brilhosas para enrolar o pacote da escravidão, como nos tempos da escravatura quando os proprietários davam o título de capitão para seus negros mais algozes e cruéis como torturadores de seus irmãos escravos. Para eles
os jovens acadêmicos não são pessoas sociais, mas clientes consumidores de uma
droga de produto que eles chamam de ensino. Pior ainda quando chamam isso de “ensino
superior”, que de superior não tem nada.
Um dos meus grandes e honrados amigos do Facebook,
o Professor João Paulo Da Cunha Gomes, retrata essa angústia que me entristece ao
escrever em sua página, que
me comoveu e que reproduzo abaixo, uma história intitulada “Zezinho e a Meritocracia” .
Ao me explicar através de mensagens em offline o
pano de fundo de sua história, o Prof. João Paulo escreveu que conhece “alunos
de extremo potencial, que obviamente não têm condições financeiras de se
dedicar a um cursinho, não chegam ao ensino superior, porque o modelo atual de
ensino segue as normas (que eu considero corretas), de valorizar as
possibilidades política e social dos educandos, o de oferecer o ensino de
acordo com as possibilidades deles. É o caso do ensino público noturno, onde a
quase totalidade dos alunos é pobre, trabalhadores, pessoas que dão o que podem
para poder concluir o Ensino Médio. Mas o mesmo sistema que acolhe os alunos
nos ensinos Fundamental e Médio, os exclui do Ensino Superior”, define o
professor.
E acrescentou o Prof. João Paulo, “as escolas particulares preparam os alunos
seus para o vestibular. Obviamente, os alunos da rede particular apenas
estudam. Só se dedicam a isso.”
Ao comentar a realidade dos alunos trabalhadores
que estudam à noite, escreve: “É outra realidade. É injusto demais. ... muitos
talentos deixam de chegar ao Ensino Superior, por conta justamente do sistema meritocrático
e completamente injusto do vestibular”.
Sou presidente da Ibrapaz, querida amiga. Nessa
instituição desencadeamos discussões e estudos para construirmos ensino
superior que não abra mão dos valores transversais da justiça e da paz na
construção de matrizes curriculares, de professores voltados para a educação
como bem e processo social, sua missão de construir pessoas para a sociedade e
disciplinas humanísticas na busca da formação humana e não apenas de profissionais
medíocres para o mercado. Em nossa discussão buscamos fórmula de sustentação
financeira que não onere opressivamente os alunos.
Sugiro que leias abaixo a história real do Prof.
João Paulo. Ele mora “no interior de São Paulo, em uma cidadezinha, São
Sebastião da Grama.” Escreve-me sobre sua realidade: “aqui o forte é a
agricultura, o café daqui é considerado o melhor do Brasil. O município faz
divisa com Poços de Caldas, por isso, a qualidade da terra, que é resultante da
atividade vulcânica do vulcão extinto sobre o qual Poços se ergueu. Isso que
escrevi é baseado em fatos reais. São muitos os casos”, contou-me o meu amigo.
Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e
pela paz.
Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e republicano.
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Zezinho mora na zona rural. Tem dezessete anos de
idade, e desde os sete trabalha na lavoura, para ajudar no sustento da família.
Ele madruga todos os dias, pelas quatro da matina já está de pé. Após tomar o
café, ainda antes de o sol nascer, lida na ordenha do rebanho da fazenda.
Os primeiros raios de sol apontam no horizonte e
Zezinho já está na roça. Ele sabe tudo de roça. Trabalha com carinho e
dedicação. Mesmo adolescente, Zezinho é o empregado de confiança do fazendeiro,
que tem ele como um verdadeiro conselheiro. Zezinho conhece os segredos da
terra, sabe do que ela necessita, como deve ser preparada, tem a noção exata da
melhor época para semear.
Zezinho também conhece todos os tipos de defensivos
agrícolas, é perito no assunto, e orienta sempre o patrão quanto ao produto
melhor recomendado para cada tipo de cultura. Inteirou-se, sozinho, quanto às
legislações ambientais, sobre o que é legal e o que não o é. Por conta de seu
conhecimento e de seu trabalho, o patrão de Zezinho sempre faz boas colheitas,
e obtém grandes lucros.
O que é produzido na fazenda onde Zezinho trabalha
e coordena gera prêmios para o fazendeiro, que tem muitos troféus relacionados
com controle de qualidade; alimentos com baixa incidência de agrotóxicos
nocivos à saúde humana. Nem é preciso repetir que Zezinho é o braço direito do
patrão.
Zezinho não se importa com o baixo salário que
recebe, não liga que seja descontado de seu salário o aluguel da choça em que
vive, bem como não lhe incomoda o fato de ser-lhe cobrado o leite que ele tira
das vacas para seu próprio sustento. Ele recebe um salário mínimo mensal já com
os referidos descontos. Zezinho, na verdade, quer ser agrônomo, este é o seu
maior sonho. E por isso se esforça demais. Ele cursa o terceiro ano do ensino
médio, que irá concluir este ano.
Na hora da refeição, Zezinho pega sua marmitinha e
senta-se embaixo de uma figueira, no alto de um pequeno morro, de onde observa
aquela imensa plantação, que mais parece uma selva, toda cheia de vida, e se
sente orgulhoso por ser aquela plantação fruto do seu conhecimento, do seu
trabalho. Ele imagina o dia que se tornará agrônomo, e a felicidade que dará a
seus pais. Ele chega a suspirar e ergue uma das mãos para o alto, onde ele
imagina ser o céu; em seguida tira seu chapéu, em sinal de agradecimento e
confiança de que seu sonho um dia se realizará.
Assim sendo, Zezinho tem esperança de que, no
futuro, seu conhecimento prático, que o coloca em igualdade de capacidade com
qualquer profissional formado, lhe retorne uma vida melhor, mais justa. Zezinho
nada deve em conhecimento a qualquer agrônomo. Aprendeu tudo que sabe com a
vida. O profissional contratado pelo patrão apenas assina os papéis. Quem dá as
cartas e comanda é Zezinho.
Zezinho estuda em uma escola da zona rural. Já extremamente
cansado por conta de seu trabalho pesado, que o tirou da cama logo de
manhãzinha, volta pra casa, toma um banho e sai sem jantar. É o melhor aluno da
classe. Dedicado, responsável, esforçado. Um exemplo de estudante, adorado por
todos os professores, pela direção da escola e pelos funcionários. Prestativo,
ajuda sempre seus amigos que têm dificuldades.
Contudo, a realidade de Zezinho não lhe permite que
se dedique mais aos estudos, ele faz o que é possível. Ele faz mais que o
possível. Nem teria como fazer mais, pois Zezinho também trabalha boa parte dos
sábados. O mínimo tempo que lhe sobra é o que resta do final de semana. E ele
aproveita as migalhas do tempo. Entrega todas as tarefas para os professores,
feitas a mão; não possui computador, mas tem uma caligrafia e uma escrita
invejáveis. Toma emprestados os livros da biblioteca e, mesmo exausto, faz suas
leituras aos domingos. Um aluno brilhante.
Mas
Zezinho é aluno do ensino médio rural, período noturno. Zezinho é pobre. As
suas realidades social e política não lhe permitem fazer mais. Ele faz o que
pode, o que está dentro de suas possibilidades e realidade.
Zezinho
prestou vestibular. Não passou. Zezinho não será engenheiro agrônomo.
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