Meu querido Padre Manoel
Imagino o que sentes com a eleição de Jorge Mario Bergoglio para bispo
de Roma e chefe do Vaticano. Sei de teu sofrimento por seres perseguido por
bispos intolerantes e amigos dos oligarcas. Supervisores – significado da palavra
bispo em grego – dominados pela ideologia capitalista e cheios de si não fazem
outra coisa do que acomodar puxa sacos ao redor deles e perseguir sacerdotes
revolucionários. És perseguido por arcebispos intolerantes e sensíveis a
fofocas de madames de paróquias e catedrais. Esse tipo de supervisor episcopal
não é orientado pelo espírito pastoral, mas pelos desejos de consumo dos que
gostam de ouvir sermões água com açúcar e usar igrejas para ludibriar as
pessoas.
Tive tristes experiências sob governos de bispos assim. Em certa
oportunidade, desesperado com o destino do Brasil sob o impacto do
neoliberalismo diabólico, comandado por seu moleque de recados, o falso
intelectual Fernando Henrique Cardoso, fiz um jejum de 25 dias contra suas
medidas entreguistas. Numa hora assim é que se percebe quem é quem. Sob o
episcopado de um preguiçoso e filhote de madames de catedral, que eu apelidei
de múmia insensível, fui jogado às traças sem nenhum apoio a não ser de
parlamentares e do povo vítima do massacre imperialista. O bispo múmia
insensível não apareceu em nenhum momento para dar apoio, para aliar-se à luta
contra a injustiça que dilapidava nosso País e nosso patrimônio nacional. Pelo
contrário, enviou-me um arrogante que, antes de chegar a mim em fraternidade,
juntou-se a inimigos meus e do povo para me inquirir e humilhar publicamente alegando
que as razões para a atitude drástica que tomei eram de ordem pessoal e
familiar. É assim mesmo que conservadores e reacionários fazem: eles não
conhecem razões sociais em virtude de seu individualismo. Por existirem no giro
em torno de si mesmo e de suas famílias pensam e agem na exigência de que todos
façam o mesmo. Não por acaso esse enviado da múmia é desde algum tempo seu bispo
auxiliar. Os iguais se atraem porque madames de catedral não conhecem outras índoles.
Agora o mundo se depara com a incógnita interessante, que se chama Papa
Francisco. Ele sai da Argentina e da América Latina, infestada até há pouco tempo
por ditaduras militares sanguinárias e devastada pelos ventos neoliberais, que
jogaram nossos povos na miséria e na desesperança. Durante as ditaduras
militares muitos padres, bispos, cardiais, pastores e congregações colaboraram
com os golpes fascistas. Alguns até ajudaram a torturar e a matar antes de
rezar e celebrar em altares coligados com os crimes ditatoriais. Conheci
capelães militares sacerdotes e pastores que ganhavam vultosos salários para
silenciar e colaborar com os massacres e assassinatos de combatentes e de
inocentes. Sei de bispos que até entregaram jovens e sacerdotes aos
torturadores. Na Argentina, onde uma das mais brutais ditaduras matou 30.000
pessoas, as igrejas além de colaborar com os generais de plantão em golpes de
Estado, os mais moderados se omitiram e nada fizeram para salvar os presos
políticos dos martírios a que foram submetidos. Claro, nem todas as autoridades
religiosas se acovardaram, houve quem reagiu frontalmente no enfrentamento dos criminosos
ocupantes do Estado, por isso pagaram com a perda de suas vidas e com a perda
da liberdade. Aqui no Brasil muitos bispos e cardiais romanos enfrentaram a
ditadura e a denunciaram internacionalmente e pelos ditadores eram temidos. Mas
na Argentina a cúpula da Igreja Católica Romana conviveu com os torturadores e
assassinos, que eliminaram tantas vidas sonhadoras. Ainda não há certeza de em
que medida o padre, bispo e cardeal Jorge Mario Bergoglio atuou. Há suspeitas
de que tenha colaborado com o regime fascista ou, no mínimo, se omitido. Vale
lembrar que omissão é a mesma coisa que deixar que o inimigo destrua as
pessoas. Mas há testemunhos que afirmam que Jorge Mario Bergoglio agiu nos
bastidores para libertar os presos políticos e para dar fuga a outros. O
Vaticano reagiu fortemente às denúncias de colaboracionismo do Cardeal
Bergoglio com a ditadura. Chega a afirmar que isso são calúnias de uma esquerda
anticlerical. Ora, essa reação, por mais veemente que seja, não explica nada. O
Vaticano, aliás, pelo menos até agora, não dispõe de nenhuma moral para reagir
assim nem negar nada. A cúria romana é conivente com roubalheiras, com
pedofilias, com o neoliberalismo, com as atrocidades dos Estados Unidos, com as
ações de Papas de direita e colaboracionistas da barbárie como Pio XII, que se manteve alheio e omisso a Hitler e o holocausto por ele causado na Alemanha, João
Paulo II e Bento XVI, que se calaram com a matança no Iraque, no Afeganistão,
na Líbia, na Síria, na prisão de Guantamo etc, promovidas por Buch e por Obama.
O Vaticano é perito em omissão e conivência.
Porém, é preciso entender o contexto latinoamericano que encharca o Papa
Francisco e a Igreja Romana de agora em diante. Jorge Mario Bergoglio, que se
tornou o Papa Francisco, exerceu seu ministério num contexto complexo e
imensamente tenso. Por um lado, ditaduras militares sangrentas que combateram
reacionariamente reformas e indícios revolucionários, seguido de um
neoliberalismo que assaltou os aparelhos de Estado em quase todo o Continente. Por outro, contingentes enormes de famintos,
doentes, mal habitados, desterrados, desempregados, aposentados sem direitos, abandonos,
os sem tudo (terra, teto, saúde, emprego, mídia, saúde, dignidade etc) onde
Bergoglio se fez humilde e simples. Andou nos metrôs e ônibus usados pelos
pobres, percorreu favelas onde os humildes moravam.
É fácil de imaginar a tensão que Francisco vive na nababesca sede do
Vaticano. Imagino suas noites após a eleição pelo colégio cardinalício.Em seu
coração deve se digladiar o contexto polar de onde emergiu ao papado: os gritos
dos mártires da ditadura bandida ecoam em sua alma e pressionam por coerência;
os pobres de Buenos Ayres, representantes das vítimas do capitalismo em todas
as formas políticas de dominação, se apresentam a ele todos os dias e lhe pedem
coerência com a justiça e com os propósitos que alega defender. Nessa sexta-feira
ele explicou que o nome Francisco veio de uma frase de Dom Cláudio Hummes, dita
aos seus ouvidos durante o primeiro abraço ao atingir o número de votos que
assegurou sua eleição: “Não se esqueça dos pobres”. Numa reunião com os cardiais
Francisco pediu que eles saiam de seus palácios e andem pelas favelas.
Sabe-se que o contexto é definidor de visões de mundo e de ações. Há
quem tanto se submeta a circunstâncias opressoras que reproduzam a opressão em
suas relações e em suas práticas. Não conseguem erguer a cabeça para fora da
borrasca. Nela mergulham e se afogam. Há outros que se sensibilizam tanto com a
realidade social e suas vertentes injustas que conseguem entender que a
opressão não é natural, não é herança sagrada, não é caída do céu nem inventada
pelo diabo. Compreendem politicamente
que podem mudar as circunstâncias rompendo com as fontes opressivas sem aceitar
suas benesses que silenciam consciências. Há muitos exemplos do destemor
inteligente de quem soube romper para avançar: São Francisco desnudou-se
literal e ideologicamente da família oligárquica que empobrecia os
trabalhadores da fábrica de tecelagem de seu egoísta pai em Assis. Tornou-se o
santo dos pobres porque soube despojar-se das migalhas da família e da igreja
opressoras; Karl Marx soube romper com a filosofia e cultura feudais e
capitalistas de seu tempo para construir as bases teóricas e científicas de uma
sociedade justa e sem dominadores, segundo ele, do homem dominando o homem; Chê
Guevara, depois de um turismo pela miserável América Latina ao deparar-se com
chocantes mazelas sociais causadas por sistemas arcaicos feudais e capitalistas,
entregou sua juventude promissora à revolução e ao martírio; Dom Oscar Romero era
conservador quando nomeado arcebispo de San Salvador, todavia ao deparar-se com
a miséria de seu povo, com os terríveis esquadrões da morte, assassinos
treinados em escolas militares dos Estados Unidos, rapidamente optou pelos
pobres, pela justiça e pela não violência. Graças à sua opção foi assassinado
pela ditadura de seu País através da arma engatilhada de um atirador de elite
do exército salvadorenho no dia 24 de março de 1980; Dom Helder Câmara era fascista
quando jovem padre, seguidor fanático de Plínio Salgado, contudo sua visão
começou a mudar quando foi bispo auxiliar no Rio de Janeiro ao confrontar-se
com a pobreza e a miséria de seu povo, transformou-se completamente à frente da
arquidiocese de Olinda e Recife, a partir da qual se tornou famoso na defesa
dos direitos humanos, das liberdades e dos pobres, onde morreu abandonado pelo
Papa João Paulo II.
O cristianismo nasceu num contexto extremamente contraditório. Nosso
mestre nunca seguiu os caminhos da opressão e da conivência com os opressores. Pelo
contrário, atacou os ricos, os poderosos e por eles foi crucificado e morto.
Décadas depois dele surgiu na Palestina um fanático fariseu que perseguiu os sobreviventes
seguidores de Jesus. Prendeu e matou muitos deles. Sujou suas mãos com seu
sangue, a começar por Estevão, apedrejado em Jerusalém. Saulo era convicto de
seus dogmas e por eles matava e seria capaz de morrer. Até que num dia a
caminho de Damasco caiu em si e mudou de vida. Após 14 anos de estudos, de
reflexão e amadurecimento críticos iniciou sua grande trajetória como o novo
apóstolo de Jesus. Mudou sua vida de perseguidor a perseguido. Morreu na prisão
como mártir da fé em Jesus de Nazaré. Isto é, para usar termos de conceitos de
hoje, Paulo saiu de uma posição de direita para uma posição justa, onde se
movia Jesus.
O Papa Francisco chegou ao Vaticano saindo de nosso Continente intenso de traidores,
covardes, assassinos, ditadores, omissos, mas também de heróis, de lutadores,
revolucionários, mártires, de generosos que lutaram e lutam com gigantesca e
inabalável compaixão pelo próximo. O Papa Francisco pode sim fertilizar-se com
o sangue e com a consciência dos santos e santas ricos em amor na América
Latina. Caso tenha pecado ao omitir-se em face da ditadura violente e injusta,
o Papa Francisco poderá pedir perdão e pedir para se reunir com os pobres e
lutadores do amor social. Será perdoado, sem dúvidas. Será acolhido e amado por
todos.
Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz.
Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e republicano.
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