A tragédia de um cristianismo arrogante
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor
do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past.
Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e
Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília
Há várias semanas estamos acompanhando os
acontecimentos que dizem respeito à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da
Câmara de Deputados. Os representantes de determinadas minorias, e pessoas
militantes em espaços e instituições de defesa dos direitos humanos, não
aceitam a eleição para presidente desta Comissão do Pastor Marcos Feliciano,
conhecido por suas manifestações públicas homofóbicas, racistas,
discriminadoras e preconceituosas.
O deputado tenta se defender afirmando que as
acusações não procedem e que determinadas declarações ele não as fez como
presidente da Comissão, mas enquanto pastor. Como se fosse possível negar o que
foi postado em redes sociais e filmado em certas ocasiões e como se fosse também
possível separar a atuação de uma pessoa na função pública da sua vida
particular. Toda pessoa que aceita uma função pública deve estar consciente de
que ela, enquanto estiver na função, não poderá separar isso daquilo.
Porém, o problema mais grave neste episódio é que o
fato expressa um tipo de cristianismo arrogante e prepotente que, sob certos
aspectos, nos faz voltar à Idade Média e ao período da Santa Inquisição. Desta
vez os protagonistas da arrogância e da prepotência não são os católicos, mas
grupos ou pessoas do seguimento evangélico. Embora não faltem no atual
catolicismo ultraconservador de direita, pessoas e grupos imbuídos da mesma
arrogância e da mesma prepotência.
Trata-se de arrogância e de prepotência porque,
como nos lembrou décadas atrás Paul Ricoeur, tais pessoas ou grupos cristãos
pretendem ocupar o lugar reservado exclusivamente para Deus. Essas pessoas e
esses grupos não só pretendem dizer a Deus como ele deve se comportar em
relação aos que são diferentes delas e deles, mas se colocam como juízes para condenar
quem pensa diferente ou quem quer ser diferente. Sentam-se solenemente em suas
"cátedras” e, revestidos com as togas de acusadores, com ares de soberania de
deuses tiranos, apontam o dedo contra aqueles que ousam pensar diferentemente
ou viver diferentemente. "Amarram pesados fardos e os colocam no ombro dos
outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo”
(Mt 23,4). Assim, por exemplo, pretendem ditar para todas as pessoas de uma
sociedade pluralista, como é o caso do Brasil, normas que dizem respeito apenas
ao seu próprio credo. Querem que todos, sem exceção, sejam submetidos aos
dogmas por eles inventados e falsamente atribuídos a Deus (Mc 7,9). Não admitem
que pessoas possam viver diferentemente, segundo suas convicções e crenças. Não
querem permitir que tais pessoas expressem o que sentem e vivam publicamente
segundo suas convicções, sob a alegação de que isso é ofensivo e imoral. Transformam
o próprio credo e a própria moral em moralidade universal que, segundo eles,
deveria ser imposta a todas as pessoas.
Na raiz do racismo, da homofobia, da discriminação
e do preconceito praticados por estas pessoas ou seguimentos cristãos está um
ato profundamente diabólico: acusar
os outros diante de Deus (Ap 12,10). Ao usarem de intransigência e ao apontarem
arrogantemente o dedo contra quem não lê pela cartilha deles, tais pessoas ou
grupos deixam de ser discípulos e discípulas de Jesus para serem seguidores do
Diabo, o acusador dos irmãos diante do trono da divindade. Cena, aliás, muito
bem retratada no Auto da Compadecidade Ariano Suassuna. Como no tempo de Jesus, pastores, padres, bispos e
lideranças cristãs se unem para acusar e para apedrejar aqueles e aquelas que
consideram imorais e infratores imperdoáveis da moralidade (Jo 8,1-11).
O resultado deste tipo de comportamento é o fato de
que tais lideranças costumam se esquecer de que suas falhas e seus pecados são
muito mais graves do que os pecados daqueles e daquelas que acusam. Costumam se
esquecer de que, quase sempre, elas são responsáveis por tantas outras mazelas
e por tantos outros pecados imperdoáveis e que ofendem muito mais a Deus do que
as fragilidades dos que são por elas acusados (Jo 8,7). Vejo pastores, bispos e
padres dando verdadeiros chiliques porque, de repente, viram dois homens se
beijando ou uma mulher famosa revelando que ama outra mulher. Mas não os vejo
dando chilique porque diariamente morrem no mundo milhares de crianças vítimas
da fome, da subnutrição, das guerras e dos próprios conflitos religiosos,
muitas vezes alimentados e patrocinados por países tidos como tradicionalmente
cristãos. Não vi, por exemplo, a bancada evangélica no Congresso, ou padres e
bispos católicos, se mobilizando para punir aquele pastor que, após enfiar na
cueca e nas meias o dinheiro roubado dos moradores do Distrito Federal, fez com
os outros ladrões a famosa "oração da propina”, agradecendo a Deus pelo roubo
que acabavam de praticar.
Nota-se tanta obsessão e tanta histeria ao atacar a
homossexualidade e atos sexuais considerados inadmissíveis, mas não vejo o
mesmo empenho e o mesmo compromisso na luta contra a corrupção, contra o desvio
de verbas públicas, especialmente da saúde, que terminam por matar tantas
pessoas pobres e inocentes. Não vejo nenhum deputado evangélico, e nenhum padre
e bispo católico obcecado por pecados sexuais, tendo a mesma postura de
profetas como Amós que denunciava as "vacas de Basã” que moravam em palácios de
luxo, oprimiam os fracos, maltratavam os necessitados e, com seus maridos,
realizavam banquetes às custas dos mais pobres (4,1-3). Não vejo nenhum deles
denunciando as maquinações de políticos, de latifundiários, do agronegócio etc.
e que visam "comprar o fraco por dinheiro, o necessitado por um par de
sandálias, e vender o refugo do trigo” (Am 8,6).
Não custa lembrar o risco da hipocrisia nessas
atitudes prepotentes e arrogantes, especialmente quando se concentra todos os
pecados do mundo na questão da sexualidade. Carlos González Vallés no seu livroQuerida Igreja (Paulus, 1998) já nos
lembrava anos atrás que toda essa obsessão pelos pecados sexuais esconde um
desejo de dominação e de manipulação por parte dos chefes cristãos. Como a
sexualidade é algo inerente a toda pessoa humana, fica mais fácil dominá-las e
controlá-las através da condenação obsessiva dos pecados do sexo. Tal
condenação funciona como uma espécie de "quebra-molas”, freando todo e qualquer
desejo de autonomia e de liberdade. "A razão do exagero que a Igreja sempre
exerceu nesse domínio e da gravidade do pecado sexual é fácil de ver. A Igreja
deseja controlar seus súditos, e o instrumento de controle mais eficaz é o
medo” (Vallés, p. 109). A superação do medo e a liberdade diante da sexualidade
tiram os fiéis do controle dos pastores, dos padres e dos bispos.
Consequentemente tal liberdade afeta também os cofres das Igrejas. Pessoas
livres se recusarão a pagar os dízimos com os quais as Igrejas se mantêm e
mantêm seus programas religiosos na mídia, usados para acusar "nossos irmãos,
dia e noite, diante do nosso Deus” (Ap 12,10). Pode-se concluir que a
verdadeira razão de tanta obsessão pelos pecados do sexo é de ordem econômica e não de ordem cristã:
pastores, padres e bispos temem perder o controle de seus fiéis e, com isso,
perder também as vultosas somas de dinheiro que patrocinam sua arrogância e sua
prepotência. É claro que eles negarão veementemente esta minha afirmação. E
isso é normal, pois nem sempre isso é feito de forma consciente. Porém, hoje,
com a ajuda da Psicologia, sabemos o que pode fazer o inconsciente, especialmente
o inconsciente coletivo.
Por fim, não custa lembrar que o amor é a essência
do cristianismo. Quem ama é de Deus, permanece em Deus (1Jo 4,7-8) e quando há
amor verdadeiro não existe lugar para o medo e para o temor (1Jo 4,18). E os
evangelhos nos mostram que não são as lideranças religiosas as pessoas que mais
amam. São as pessoas tidas pelo sistema religioso como as mais pecadoras,
aquelas que mais amam no sentido pleno e mais evangélico da palavra (Lc
7,36-50). Então porque não aceitar a possibilidade de que entre duas pessoas do
mesmo sexo possa existir um amor autêntico? Um amor profundamente humano que
pode ser comparado ao amor existente entre um homem e uma mulher (2Sm 1,23-27)?
Um amor como o de Jesus que não escondia sua predileção, a sua afeição e a sua
ternura por um discípulo, permitindo-se certa intimidade que era exclusiva da
relação de um homem com sua esposa (Jo 13,23-25)? Ou será que tais pessoas já
admitem a possibilidade de que o "discípulo amado” (Jo 21,7) possa, na verdade,
ser uma "discípula amada”? Mas, neste caso, a história já seria outra e
provocaria verdadeira revolução no cristianismo.
[Autor de Viver
em Comunidade para a Missão. Um chamado à Vida Religiosa Consagrada, por
Paulus Editora. Mais informações: http://www.paulus.com.br/viver-em-comunidade-para-a-missao-um-chamado-a-vida-religiosa-consagrada_p_3083.html].
"tais pessoas ou grupos deixam de ser discípulos e discípulas de Jesus para serem seguidores do Diabo". Caro, o novo testamento da Biblia afirmar que os que nao reconhecerem, se arrependerem, renunciarem e reprovarem quaisquer pecados não entrarão no Céu. Claro que se poderia fazer tudo isso nos ultimos minutos de sua vida (como um dos ladroes... mas não é regra. De qualquer forma os pecados sexuais (lascivia, luxuria, fornicação, imoralidade, impureza, concupscencia, sodomia, adulterio) sem reconhecimento, arrependimento, renuncia e reprovação continuam afastando as criaturas da adoção divina, como quaisquer pecados. Nisso, o tal Feliciano não errou em afirmar.
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