Há
na raiva que as elites dominantes sentem em relação às lideranças que
questionam o status quo, como Lula, Obama ou Chávez, algo que vai além da "luta
de classes” ou da defesa dos seus interesses econômicos. Essa raiva, que alguns
procuram esconder atrás de discursos "civilizados”, aparece nas ironias e
acusações genéricas nos grandes meios de comunicação e também no radicalismo
político visto, por ex, na direita norte-americana na eleição presidencial,
visando não permitir a reeleição de um presidente que é negro e, para piorar, pretende
aumentar gastos sociais com pobres e imigrantes. A reeleição de Obama
significou que um negro não ganhou a primeira eleição presidencial por acaso,
por um lapso da sociedade, que a linha divisória da raça foi mais uma vez,
ainda que não de modo definitivo, ultrapassada. Por isso, a raiva da elite
branca tradicional e dos setores médios que se identificam com ela.
No
caso brasileiro, é mais claro que a teoria de classes ou de interesses
econômicos não é suficiente. Como dizia Lula, quando estava na presidência, a
burguesia brasileira ganhou muito dinheiro com a política econômica do seu
governo e também com os programas sociais. Afinal, quando os pobres passam a
consumir muito mais que antes, é a burguesia que lucra a porção maior desse
crescimento econômico e distribuição de renda.
Passada
a euforia de ganhar dinheiro, enquanto o mundo estava em crise econômica, a
elite brasileira tradicional voltou ao seu estado normal e procura qualquer e
todo motivo para atacar a imagem de Lula e do governo da sua sucessora, a
presidenta Dilma. É claro que houve e há problemas de diversas ordens no
governo Lula e o atual, mas a forma como a mídia os trata é muito diferente de
como tratou, por ex, no governo Fernando H. Cardoso. As ironias, críticas
imponderadas e desproporção de enfoques na apresentação dos fatos mostra, ao
meu ver, um desejo – não importa se consciente ou inconsciente – de revanche ou
vingança; um acerto de contas que não dá para ser medido objetivamente ou em
termos econômicos.
Uma
pessoa muito próxima de mim, que inconscientemente se identifica com a elite
tradicional, me perguntou às vésperas da última eleição municipal em S. Paulo:
"como você pode votar no Haddad, alguém indicado por Lula, que acabou com o
país, que colocou o país nesse caos!”. É claro que ela estava se referindo a
situação do Brasil como caos influenciada pelas notícias sobre o julgamento do
mensalão e de outros comentários sobre Lula e o PT. Foi uma reação tão
"irracional”, espontânea e meio fora de si, por parte dela que outras pessoas
que estavam juntas na conversa mudaram de assunto para evitar situação
desagradável no jantar.
O
preconceito contra Lula não se explica meramente por "interesses econômicos” ou
por "luta de classes”. Capitalistas "puros”, aqueles que não deixam que nada
(ou quase nada) interfira no cálculo dos interesses econômicos não teriam muito
problema com um novo governo estilo Lula. Pois sabem que a distribuição de
renda (que é diferente da distribuição de riqueza acumulada) é hoje um fator
importante na acumulação do capital. O problema é que os capitalistas são
também pessoas de carne e osso, com preconceitos culturais e problemas de identidade
pessoal.
Se
a riqueza fosse suficiente para realização pessoal ou para constituição de uma
identidade pessoal humanizadora, como propaga a ideologia capitalista
neoliberal, essas pessoas não nutririam essa raiva e preconceito contra
lideranças sociais ou políticas que representam e/ou defendem a dignidade dos
pobres, negros, índios, mulheres... Elas estariam satisfeitas com elas mesmas e
não haveria lugar nelas para essas raivas injustificadas. Esses preconceitos e
raiva, que vão contra seus interesses econômicos, mostram que há outras
questões profundas em jogo. Revelam sua necessidade de se sentirem superiores.
Sentimento esse que é desvelado, revelado como mentira, quando um negro se
elege presidente de um país racista ou quando um operário nordestino se torna
presidente mais popular da história do Brasil e é reconhecido
internacionalmente por suas políticas econômicas e sociais que colocaram como o
objetivo principal o direito de todos/as brasileiros/as de comer três refeições
ao dia.
Governos
Obama, Lula, Dilma ou Chávez têm, é claro, seus problemas, erros e também casos
de corrupção; como todos governos. Criticá-los é um dever dos meios de
comunicação, da sociedade civil e da oposição política. Mas, quando a raiva e
preconceito dominam o "tom” dessas críticas, o que está em jogo é algo mais
profundo do que luta política, liberdade de expressão ou democracia. Está em
jogo o que os antigos chamavam de espiritualidade, não uma espiritualidade
restrita à vida pessoal, mas que toca a toda sociedade. (a continuar)
[Jung Mo Sung. Autor, com N. Míguez e J. Rieger, de "Para além do Espírito do Império”, Paulinas, 2012. Twitter: @jungmosung]. Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
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