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quarta-feira

“O ecumenismo ou reconhece o outro ou está num beco sem saída…”


Dimas de Almeida
António Marujo entrevistou Dimas de Almeida para o jornal Público, a propósito dos 500 anos do nascimento de Calvino.
A doutrina de Calvino, nascido fez ontem 500 anos, acabou por influenciar a construção da democracia, esteve no desenvolvimento do capitalismo e foi decisiva para que a Igreja Confessante na Alemanha se opusesse convictamente ao nazismo. Pela primeira vez em Portugal, está publicado um texto de Calvino. Isso deve-se a Dimas de Almeida, que aqui explica a herança do reformador.
Investigador no Centro de Estudos de Ciências das Religiões, da Universidade Lusófona, Dimas de Almeida, 72 anos, é pastor da Igreja Presbiteriana de Portugal, herdeira espiritual de Calvino. Nos últimos meses, Dimas de Almeida traduziu dois dos principais textos da Reforma protestante: a Breve Instrução Cristã, de Calvino, e as 95 Teses sobre as Indulgências, de Lutero. Dimas de Almeida diz que o ecumenismo tem que passar do diálogo ao reconhecimento do outro e que as fronteiras entre igrejas estão cada vez mais esbatidas.
Ao dinamizar comunidades cristãs com uma organização mais democrática, Calvino influenciou a democracia contemporânea?
Não há dúvida de que os descendentes espirituais de Calvino, nos Estados Unidos, com a sua forma de governo de Igreja, influenciaram.Calvino nunca recebeu uma ordenação, foi sempre leigo. A estrutura eclesial em que os leigos têm uma função tão ou mais importante que a dos que não o são foi importante. Tal como a participação do laicado nos processos de decisão, e o sistema presbiteriano sinodal – o sínodo é o órgão supremo e tem que ter tantos leigos como pastores.
As igrejas de Lutero são diferentes? Lutero não estruturou a Igreja. Para o luteranismo, há o pastor, que não é clérigo, mas também não é estrutura ministerial, como em Calvino.Inspirando-se no Novo Testamento, Calvino estabelece o ministério do pastor, para a pregação e administração dos sacramentos; do doutor, que ensina; do ancião, que conduz a comunidade local – e que é leigo; e do diácono. Sem hierarquia. É esta organização eclesial que terá repercussão [política].
Calvino também defende a autonomia do casamento…Ele chama a atenção para o facto de que o casamento é um acto civil. Em Calvino, o casamento não é sacramento. Para ele, tão casado era um casal sem a bênção da Igreja como o que tinha a bênção. O casamento não era um sacramento, pertencia ao domínio laico.Só adopta o baptismo e a ceia como sacramentos…Em linguagem de hoje, Calvino dessacraliza o casamento. Ao retirar o casamento das amarras de um poder religioso que o condiciona eticamente, Calvino escancara as portas a uma nova interpretação do casamento e da sexualidade, entendendo o casamento como espaço em que a sexualidade não se reduz à procriação.Não é a sexualidade que se inscreve no casamento, mas o casamento que se inscreve na sexualidade.
Há 100 anos, Max Weber diz que a ética, sobretudo a de Calvino, está também na origem do capitalismo. Weber estuda mais o agir ético dos puritanos calvinistas, que hipertrofiam a doutrina da dupla predestinação. A tese de Weber é a de que a ética calvinista (dos sécs. XVIII e XIX) dá um impulso, mas não é a única causa, ao aparecimento da nova racionalidade económica que é o capitalismo, que surge a partir do princípio da dupla predestinação.Os puritanos calvinistas viviam uma angústia existencial, sem saber se estavam salvos se estavam perdidos – uma coisa hoje bizarra. “Será que Deus me predestinou para a salvação?” Como raciocinavam eles? “Se Deus me abençoar nos negócios, é sinal de que me salvou.” E portanto, produziam, trabalhavam, investiam. Um princípio religioso leva a uma actividade económica.
Ou seja, Calvino vem depois de Lutero, mas a sua influência parece ultrapassar a de Lutero: na política em relação à democracia, na economia com o capitalismo e com a Igreja Confessante, na oposição a Hitler.
Isto é verdade? Se tivermos em conta as repercussões culturais da Reforma protestante do século XVI, no campo da política e da economia, elas inscreveram-se muito mais no trabalho realizado por Calvino.A teologia calviniana privilegia a dimensão ética, decorrente da interpretação mais positiva da lei de Deus. O registo luterano permitiu que, nos tempos do nazismo, a Igreja Luterana na Alemanha silenciasse o que se estava a passar.Calvino posiciona a fé e o comportamento cristão entre a lei de Deus e a obediência à lei de Deus, entre um poder religioso que não pode esgotar-se em si mesmo, mas que é chamado a ter uma palavra profética. Este pensamento proporcionou achegas importantes para que a Igreja Confessante fosse contra a Igreja oficial, que foi complacente com o nazismo.
O anti-semitismo de Lutero pode ter tido influência? Repugnar-me-ia falar de anti-semitismo em Lutero. O que acontece em Lutero é um re-pensamento teológico do papel do judaísmo, que não conduz ao que chamaríamos anti-semitismo.Há uma diferença entre Lutero e Calvino, no que diz respeito ao valor do Antigo Testamento. Calvino valoriza-o mais do que Lutero. Para Calvino, é a forma primeira da única revelação de Deus. A ideia de uma revelação progressiva não encontra nele um grande acolhimento.O Antigo Testamento é muitas vezes mal interpretado, porque Deus aparece como violento, cruel. Há um Deus que se revela frequentemente sob traços humanos: do ciúme, da violência, da guerra… Mas este é o Deus de Jesus. Rejeitar o Deus do Antigo Testamento seria rejeitar o Deus de Jesus.
Calvino tem essa ideia? Talvez de forma mais enfática que Lutero, Calvino chama a atenção para o Antigo Testamento e o agir aqui na Terra. Quando Bonhoeffer está preso, escreve nas cartas que o que mais lê na cadeia [nazi], em Berlim, é o Antigo Testamento, porque o leva para “a realidade do concreto”, para um Deus que se mistura com a história.Lutero e Calvino são muito influenciados por São Paulo. Hoje, a exegese diz que, quando Paulo falava de fé e obras, se referia às regras de conduta e alimentação no judaísmo. A oposição entre fé e obras foi uma das razões da ruptura de Lutero.
Quer dizer que ela se deu por uma questão que não existia em São Paulo? Nestes últimos 40 anos tem surgido uma nova exegese e uma reapreciação do que Paulo diz. Uma tão grande oposição entre fé e obras não é característica do judaísmo do tempo de São Paulo: não havia uma valorização das obras e uma desvalorização da graça de Deus.Há elementos para um reexame e para repensar o diálogo ecuménico. Essa é uma tónica importante a não perder de vista: qual é a contemporaneidade da Reforma? Porque é que surge uma reforma? Não só a de Lutero, a de Calvino…
Tinha havido antes Francisco de Assis, Bernardo de Claraval, João Huss. Porque é que alguns desses não chegaram à ruptura? A história de S. Francisco e do franciscanismo subsequente é de uma absorção dentro da Igreja. João Huss foi morto na fogueira…Quando se trata a Reforma do século XVI, evoca-se o mau comportamento do clero, os maus hábitos, a corrupção. Tudo isso é verdade, mas há um elemento que vai mais à essência das coisas e está presente em todos os grandes reformadores: é uma tomada de consciência da distância entre a promessa do evangelho e a realidade trágica da história.
Entre o que se crê e o que se faz? A dissonância entre o que o evangelho transporta consigo como promissor de algo novo e a realidade trágica da instituição religiosa e da história. Toda a reforma dá lugar a novos enquistamentos. A reforma, hoje, tem que passar por uma autocrítica da instituição religiosa.Hoje trata-se de saber como dar pertinência ao cristianismo num mundo que não reconhece essa pertinência. Na Igreja Católica e nas Protestantes somos chamados a viver a fraternidade na vulnerabilidade.
Porque, sendo poucos, mais vale estarem unidos? Não é por sermos poucos. É por causa do evangelho: encontrar uma palavra profética, que dê resposta ao sentimento, que as nossas sociedades vivem, de que o cristianismo não é pertinente. O problema hoje não é o do ateísmo, é o da indiferença.E o grande desafio do ecumenismo é o reconhecimento do outro. A pluralidade das igrejas é o lugar para o ecumenismo. Não para considerar a pluralidade como pecado, mas como espaço privilegiado para as igrejas viverem hoje a reforma.
A divisão entre cristãos hoje é transversal, não passa pela divisão institucional mas pelo modo de encarar o evangelho e a vida? Sim, a geometria ecuménica diz-nos que as divisões entre as igrejas já não são coincidentes com as divisões oficiais. Há clivagens mais ou menos fundas que passam pelo interior de cada igreja – e que podem criar situações de católicos e protestantes mais perto uns dos outros do que de outros da sua Igreja – e que não têm que ser vistas como negativas.Mas é um mau sinal que o cristianismo esteja fraccionado.Mau sinal é o não reconhecimento do outro. O cristianismo é geneticamente plural. Há quem pense que, no princípio, havia unanimidade e ortodoxia, e que depois apareceu a heresia e a heterodoxia. A pluralidade e o conflito de interpretações estão presentes desde o início. Houve um tempo do anátema recíproco. No século XX, passou-se ao diálogo, com o movimento ecuménico e o Concílio Vaticano II na Igreja Católica. Mas não se pode ficar eternamente no diálogo. O grande desafio é passar do diálogo ao reconhecimento de que a pluralidade é sinónimo de riqueza: não há nenhuma igreja que esgote a verdade. A pluralidade é fecunda, para o reconhecimento do outro.Mas as fronteiras entre igrejas ainda existem.Há um esbatimento das fronteiras confessionais, que não deve redundar em perda de identidade.
A Igreja Presbiteriana de Portugal, que comemora 140 anos, está em fusão com a Igreja Metodista. É uma perda de identidade? Doutrinariamente não há coisas incompatíveis. Acho muito bem que presbiterianos e metodistas se unam. Mas são duas igrejas muito próximas. É muito mais significativo o reconhecimento do outro na sua diferença do que o movimento em que duas igrejas diferentes se unem.Seria extraordinariamente significativo se os protestantes dissessem à Igreja Católica: “É nas nossas divergências que reconhecemos toda a legitimidade à Igreja Católica para ser aquilo que é.” E que a Igreja Católica dissesse o mesmo aos protestantes. Mas estamos muito longe desse reconhecimento. Passou-se da ideologia do regresso – “separaram-se de nós, têm que voltar” – à cedência: é mais importante o que une do que aquilo que divide…
Mas isso deveria ter efeitos: porque não haver professores protestantes na Universidade Católica ou católicos em seminários protestantes? Sim, isso era uma consequência prática. A ideologia da cedência implica um empobrecimento de cada igreja, às vezes naquilo que cada uma pode ter de mais rico. O ecumenismo ou desperta para a noção de reconhecimento do outro ou está num beco sem saída.
Fonte: Público, 11/7/09.
Publicado em Actualidade

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