Jango, Dirceu e as batalhas da história
publicada quinta-feira, 14/11/2013 às 21:48 e atualizada sexta-feira, 15/11/2013 às 18:00
Rodrigo Vianna
por
Quis o destino que o corpo do presidente João
Goulart chegasse a Brasília no mesmo dia em que o Supremo Tribunal
Federal concluiu etapa substancial do julgamento do “Mensalão” – o que
deve levar ex-dirigentes petistas para a cadeia, entre eles o
ex-ministro José Dirceu.
Dilma emocionou-se ao lado da viúva de Jango, na homenagem ao presidente deposto. De alguma forma, Dilma é a ponte entre duas tradições políticas: o trabalhismo de Vargas/Jango/Brizola e o PT.
Ao fim da ditadura (depois de pegar em armas, sendo presa e torturada),
Dilma escolheu o PDT de Brizola para atuar politicamente. Dilma já fez
elogios abertos a Jango e à tradição brizolista.
Curioso que o PT tenha surgido nos anos 70/80 com um discurso de
crítica à herança trabalhista. Mas, no poder, Lula aproximou-se da
simbologia e das tradições varguistas. Curioso também pensar que, se o
“Mensalão” não tivesse existido, hoje o presidente talvez não fosse
Dilma, mas exatamente o ex-ministro agora ameaçado de prisão. “Se”. Se
Gighia não tivesse acertado aquele chute rente à trave, o Brasil não
teria perdido do Uruguai em 1950… Como dizem os comentaristas, não
existe “se” no futebol. Nem na política. Nem na vida.
Ainda assim, é possível estabelecer paralelos entre os ataques
sofridos pelo PT e o lulismo e aqueles desferidos contra Vargas e Jango.
Vargas – não resta dúvida – foi um ditador nos anos 30 e 40. Mas em
1950 voltou ao poder como líder democrático, e foi acuado pelo
conservadorismo a serviço dos Estados Unidos. Lacerda tentou cobrir
Vargas com o “mar de lama”. Nos anos 50, o discurso udenista
sustentava que Vargas comandava um governo corrupto. Contra Jango, em
1964, pesavam as mesmas acusações, e ele ainda era apontado como líder
de uma certa “República Sindicalista”.
Vargas deu um tiro no peito em 1954, dentro do Palácio. Jango foi
derrubado por um golpe. Na época, a imprensa golpista comemorou: “Escorraçado,
amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima
vontade popular o Sr João Belchior Marques Goulart, infame líder dos
comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas” - era o que dizia a “Tribuna da Imprensa”, jornal de Carlos Lacerda.
Mentira, claro. Jango tinha apoio popular – era o que indicavam as pesquisas às vésperas do golpe, como mostra Jorge Ferreira, em excelente livro sobre Jango. A
imprensa golpista de 64 criou o clima de caos e deu a impressão de que
todos queriam o golpe. Jango não saiu “escorraçado” do poder. Foi
derrubado.
“O Globo” também curtiu e compartilhou a ditadura: “Ressurge a Democracia! Vive a Nação dias gloriosos” – dizia editorial de Roberto Marinho. Aqui, na Carta Maior, você lê outros textos publicados por nossa brava imprensa democrática, nos dias seguintes ao golpe.
Certos setores de esquerda cultivaram durante anos a tese de que
Jango foi “covarde” por não reagir ao golpe. Quem acompanhava de perto o
presidente deposto diz que ele estava preocupadíssimo com uma
possibilidade: se resistisse, daria aos golpistas a desculpa para pedir a
intervenção dos Estados Unidos. Numa conversa recente, o jornalista
Mauro Santayanna disse a um grupo de blogueiros que teve o prazer de
ouvi-lo: “Jango temia a divisão física do Brasil”. Assim como haviam
feito na Koreia (e como fariam depois no Vietnã), os EUA poderiam
intervir e dividir o Brasil em dois. Jango preferiu manter a integridade
territorial brasileira. Teoria conspiratória?
Durante anos, a ideia de que Jango teria sido envenenado em 1976
(durante o exílio) também parecia uma “teoria conspiratória”. Por
insistência da família Goulart, o Brasil finalmente vai tentar descobrir
a verdade. Foram muitos anos, e talvez os traços de um suposto veneno
já não possam ser encontrados. Mas o governo Dilma toma uma atitude de
imenso valor simbólico. O corpo exumado em São Borja (RS) foi levado a
Brasília.
Jango “acovardado-escorraçado” dizia Lacerda. Jango estadista,
recebido com honras de chefe de Estado. A história se escreve
lentamente. O passado está sempre em disputa.
Dirceu, em algumas horas, pode ser preso como símbolo do “maior
escândalo da história” – como dizem os mesmos jornais golpistas de 64. A
imprensa podre quer mostrar Dirceu algemado, humilhado – da mesma forma
que Lacerda tentou humilhar o presidente deposto em 64.
Dirceu pode ter cometido erros. Mas está sendo condenado sem provas. Isso está claro. “Escorraçado, amordaçado e acovardado” -
assim jornais e revistas gostariam de ver o homem que comandou a
“virada” do PT rumo ao poder. Pelo que se conhece da história de Dirceu,
não vai se acovardar.
No curto prazo, parece derrotado politicamente. Jango também parecia
derrotado inexoravelmente em 64. Quase 50 anos depois, recebe as justas
homenagens no Palácio. A vítima de 64 não foi Jango, mas a democracia
brasileira.
Derrubado pela Guerra Fria, pelos Estados Unidos e o
conservadorismo brasileiro, Jango é o estadista, vitorioso. Lacerda e os
golpistas estão derrotados pela história. ”O Globo” pede desculpas
envergonhadas pelo apoio ao golpe criminoso.
Que papel estará reservado a Dirceu na história brasileira? “Maior
vilão do país”? “Chefe da quadrilha”? É o que berram por aí blogueiros
rotweiller, editorialistas decadentes, revistas ligadas a bicheiros…Quem venceu a batalha? A Globo? A Veja e seus asseclas judiciais? Ou o
homem que ajudou a construir um governo que – apesar de tantos erros e
recuos - prestou homenagens a Jango, e tenta acertas as contas com a
Democracia?
A História se escreve lentamente. Ainda mais no Brasil.
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