Leonardo Boff
27/10/2013
Foto: imagensefotos
[Leonardo Boff escreveu: O despertar da águia: o sim-bólico e o dia-bólico na construção do real, Vozes 2010].
Biologicamente nós humanos, somos seres carentes
(Mangelwesen). Não somos dotados de nenhum órgão especializado que nos garanta
a sobrevivência ou nos defenda de riscos, como ocorre com os animais. Alguns
biólogos chegam a dizer que somos "um animal doente”, um "faux pas”, (um passo
em falso), uma "passagem” (Übergang) para outra coisa, por isso nunca fixado,
inteiros; mas, incompletos.
Foto: imagensefotos
Tal verificação nos obriga a continuamente a garantir a
nossa vida, mediante o trabalho e a inteligente intervenção na natureza. Deste
esforço, nasce a cultura que organiza de forma mais estável as condições infraestruturais
e também humano-espirituais para vivermos humanamente em sociedade.
Acresce ainda outro dado, presente também em todos os seres
do universo; mas, que no nível humano, ganha especial relevância. Vigoram duas
forças: a primeira é autoafirmação, a segunda, a integração. Elas atuam sempre
em conjunto num equilíbrio difícil e sempre dinâmico.
Pela força da autoafirmação cada ser se centra em si mesmo e
seu instinto é conservar-se, defendendo-se contra todo tipo de ameaça contra
sua integridade e a sua vida. Ninguém aceita morrer. Quer viver, evoluir e se
expandir. Essa força explica a persistência e a subsistência do indivíduo.
Precisamos neste ponto superar totalmente o darwinismo
social segundo o qual somente os mais fortes e adaptáveis triunfam e
permanecem. Essa é uma meia verdade que está na contramão do processo
evolucionário. Este não privilegia os mais fortes e adaptáveis. Se assim fora,
os dinossauros estariam ainda entre nós. O sentido da evolução é permitir que
todos os seres, também os mais vulneráveis, expressem virtualidades latentes dentro
da evolução. Esse é o valor da interdependência de todos com todos e da
solidariedade cósmica. Todos, fracos e fortes, se entreajudam para coexistir e
coevoluir.
Pela segunda força, a da integração, o indivíduo se descobre
envolto numa rede de relações, sem as quais, sozinho como indivíduo, não
viveria nem sobreviveria. Existe o individuo; mas, ele vem de uma família, se
insere num grupo de trabalho, mora numa cidade e habita um país com um tipo de
organização social. Ele está ligado a toda esta cadeia de relações. Assim todos
os seres são interconectados e vivem uns pelos outros, com os outros e para os
outros. O indivíduo se integra, pois, por natureza, num todo maior. Mesmo que o
indivíduo morra, o todo garante que a espécie continue permitindo que outros
representantes venham a nos suceder.
Sabedoria humana é reconhecer o fato de que chega certo
momento na vida no qual a pessoa deve se despedir para deixar o lugar, até
fisicamente, a outros que virão.
O universo, os reinos, os gêneros e as espécies e também os
indivíduos humanos se equilibram entre estas duas forças: a da autoafirmação do
indivíduo e a da integração num todo maior. Mas esse processo não é linear e
sereno. Ele é tenso e dinâmico. O equilíbrio das forças nunca é um dado, mas um
feito a ser alcançado a todo o momento.
É aqui que entra o cuidado responsável. Se não cuidarmos ou
pode prevalecer a autoafirmação do indivíduo à custa de uma insuficiente
integração e então predomina a violência e a autoimposição ou, ao contrário,
pode triunfar a integração a preço do enfraquecimento e até anulação do
indivíduo e então ganha a partida o coletivismo e o achatamento das
individualidades. O cuidado aqui se traduz na justa medida e na autocontenção
para não privilegiar nenhuma destas forças.
Efetivamente, na história social humana, surgiram sistemas
que ora privilegiam o eu, o indivíduo, seu desempenho, sua capacidade de
competição e a propriedade privada como é o caso da ordem capitalista ou ora prevalece
o nós, o coletivo, a cooperação e a propriedade social como é o caso do
socialismo real que foi ensaiado na União Soviética e ainda persiste, em parte,
na China.
A exacerbação de uma destas forças em detrimento da outra,
leva a desequilíbrios, conflitos, guerras e tragédias sociais e ambientais. Com
referência ao meio ambiente tanto o capitalismo quanto o socialismo foram
depredadores e pioraram as condições de vida da maioria das populações. Em
ambos os sistemas o cuidado responsável desapareceu para dar lugar à vontade de
poder, ao enfrentamento entre ambos e até a brutalidade nas relações mundiais
visando a corrida armamentista e a dominação do curso do mundo.
Qual é o desafio que se dirige ao ser humano? É o cuidado responsável
de buscar o equilíbrio construído conscientemente e fazer desta busca um
propósito, uma atitude de base e até um projeto político. Portador de
consciência e de liberdade, o ser humano possui esta missão que o distingue dos
demais seres. Só ele pode ser um ser ético, um ser que cuida de si e que se
responsabiliza pela comunidade de vida. Ele pode ser hostil à vida, colocar-se,
como indivíduo dominador, sobre as coisas. Mas pode ser também o anjo bom que
se sente integrado na comunidade de vida, junto com as coisas. Depende de seu
empenho manter o equilíbrio entre a autoafirmação e a integração num todo e não
permitir que forças dilaceradoras dirijam a história.
Por ser ético, coloca-se ao lado daqueles que tem
dificuldades em se autoafirmar e assim sobreviver e impedir uma integração que
destrói as individualidades em nome de um coletivo amorfo. Eis uma síntese
sempre a ser construída.
[Leonardo Boff escreveu: O despertar da águia: o sim-bólico e o dia-bólico na construção do real, Vozes 2010].
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seus comentários serão publicados. Eles contribuem com o debate e ajudam a crescer. Evitaremos apenas ofensas à honra e o desrespeito.