Papa Francisco fala com um não crente de homem para homem
Leonardo Boff
Teólogo e filósofo brasileiro.
20/09/2013
Francisco,
bispo de Roma, se despojou de todos os títulos e símbolos de poder que
não fazem outra coisa que distanciar as pessoas umas das outras.
Publicou uma carta no principal jornal de Roma La Reppubblica
respondendo ao ex-diretor e conhecido intelectual não crente Eugênio
Scalfari. Este publicamente colocou algumas questões ao bispo de Roma,
Francisco. Este realizou um ato de extraordinária importância. Não
apenas porque o fez de uma forma sem precedentes mas principalmente
porque se mostrou como um homem que fala a outro homem, num contexto de
diálogo aberto, colocando-se no mesmo nível que seu interlocutor.
Efetivamente
Francisco que, como sabemos, prefere chamar-se bispo de Roma e não de
Papa, respondeu a Eugênio Scalfari de um modo cordial, com a
inteligência calorosa do coração antes que com a inteligência fria das
doutrinas. Atualmente, na filosofia, se procura regatar a “inteligência
sensível” que enriquece e alarga a “intelegiência intelectual”, pois
aquela fala diretamente ao outro, ao seu profundo. Não se esconde atrás
de doutrinas, dogmas e instituições.
Nesse
sentido, para Francisco não é relevante o fato de Scalfari se
confessar crente ou não, pois cada um possui a sua história pessoal e
seu percurso existencial que devem ser respeitados. O relevante mesmo é a
capacidade de ambos estarem abertos à escuta mútua. Para dize-lo na
linguagem do grande poeta espanhol António Machado:”A tua verdade? Não. a
Verdade. Venha comigo buscá-la. A tua guarde-a para ti”. Mais
importante que saber é nunca perder a capacidade de aprender. Este é o
sentido do diálogo.
Com
sua carta, Francisco mostrou que todos buscamos uma verdade mais plena e
mais ampla, uma verdade que ainda não possuimos. Para encontrá-la não
servem os dogmas tomados em si mesmos, nem as doutrinas abstratamente
formuladas. O pressuposto geral é que existem ainda respostas a serem
buscadas e que tudo é cercado de mistério. Esta busca coloca a todos
sobre o mesmo chão, crentes e não crentes também os fiéis das diversas
Igrejas. Cada qual tem o direito de expressar a sua visão das coisas.
Todos
vivem uma contradição terrível que envolve crentes e ateus: por que
Deus permite as grandes injustiças no mundo? É a questão que com
profundo abatimento também o Papa Bento XVI colocou quando visitou o
campo de extermínio nazista em Auschwitz. Despojou-se, por um momento,
de seu papel de Papa e falou somente como um homem com o coração aberto:
”Deus, onde estavas quando aconteceram estas atrocidades? Por que te
calaste?”
Todos
nós cristãos devemos admitir que não há uma resposta e que a pergunta
permanece ainda aberta. Consola-nos apenas a idéia de que Deus pode ser
aquilo que nossa razão não compreende. A inteligência intelectual
sozinha se cala porque não tem uma resposta para tudo. O Gênesis, como
dizia o filósofo Ernst Bloch, não se encontra no começo mas no fim. As
coisas, assim pensam os crentes, se desenrolam na direção de um desfecho
feliz. Somente no fim, de alguma maneira, nos é dado comprender o
sentido da existência. Unicamente no fim poderemos dizer:“e tudo é bom” e
podemos exclamar um “Amém”definitivo. Mas enquanto vivemos nem tudo é
bom.
Verdades
absolutas e verdades relativas? Prefiro responder com o grande poeta,
místico e pastor, o bispo Dom Pedro Casaldáliga, lá do fundo da
Amazônia:” O absoluto? Só Deus e a fome”.
Nutro
grande confiança de que Francisco com seu diálogo poderá conseguir
grandes coisas para o bem da humanidade. Começou fazendo importante
reforma do Papado. Dentro de pouco fará a reforma da Cúria romana.
Através de vários discursos acenou que todos os temas podem ser
discutidos, uma afirmação impensável tempos atrás. Temas como o celibato
dos padres, o sacerdócio da mulher, a moral sexual e a existência dos
homoafetivos. Até recente data, tais temas eram simplesmente proibidos
de serem susciatados por teólogos e bispos.
Creio
que este Papa seja o primeiro a não querer um governo monárquico e
absolutista, o “poder” como dizia Scalfari. Ao contrário, quer estar o
mais possível próximo ao Evangelho que apresenta os princípios da
misericórdia e da compaixão, tendo como centro de referência a
humanidade.
Seguramente
seu diálogo com os não crentes pode verdadeiramente ampliar-se e abrir
uma nova janela à modernidade ética que não considera apenas a
tecnologia, a ciência e a política mas que pode também levar a superar
um comportamento de exclusão, típico da Igreja Católica, em outras
palavras, a arrogância de se entender a única herdeira verdadeira da
mensagem de Jesus. Cabe sempre recordar que Deus enviou seu Filho ao
mundo e não apenas aos batizados. Ele ilumina cada pessoa que vem a este
mundo, como o recorda São João no prólogo de seu evangelho e não apenas
os crentes.
Neste
sentido, pessoalmente tenho sugerido em carta ao Papa Francisco um
Concílio Ecumênico de toda a cristandade, de todas as Igrejas, incluindo
até a presença de ateus que possam, por sua sabedoria e ética, ajudar a
analisar as ameaças que pesam sobre o planeta e como enfrentá-las. Em
primeiro lugar as mulheres, geradoras de vida, pois a vida mesma está
sendo ameaçada.
O
Cristianismo comparece como um fenômeno ocidental. Ele deve encontrar o
seu lugar no interior da nova fase da humanidade, a fase planetária.
Somente assim será para todos e de todos.
Em
Francisco, como já o mostrou na Argentina, não vejo a vontade de
conquistar e de fazer proselitismo, mas antes a disposição de
testemunhar e andar, como o reafirmou a Scalfari, um pedaço do caminho
junto com outros. O Cristianismo antes que instituição é um movimento, o
movimento de Jesus e dos Apóstolos. Nesta compreensão, viver a dimensão
da dignidade humana, da ética e dos direitos fundamentais é mais
importante do que filiar-se simplesmente a uma Igreja. Este é o caso de
Eugênio Scalfari. Importa olhar mais a dimensão de luz da história do
que sua dimensão de sombras, viver como irmãos e irmãs, na mesma Casa
Comum, a Mãe Terra, respeitando as opções de cada um, sob o grande
arco-iris, símbolo da transcendência do ser humano.
O
longo inverno eclesial terminou. Esperamos uma primavera solar, cheia
de flores e de frutos, na qual vale a pena ser humano também na forma
cristã desta palavra.
(Entrevista dada por telefone a Vera Schiavazzi no dia 15 de setembro último, de Romano Canavese, Turim).
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