Querida dona
Elaine
A senhora é mãe de Deives e de Gustavo, jovens trabalhadores
e estudantes mortos no incêndio da boate Kiss de Santa Maria. Vi a senhora pelo
noticiário de TV. O seu rosto traçava puro sofrimento. Sua voz embargada e seus
braços trêmulos apertavam-se em abraços consoladores a outras mães e a ouros
pais golpeados pela mesma barbaridade da perda violenta.
A senhora mora no bairro Perpétuo Socorro, bem próximo ao Chácara
das Flores, onde eu também morei e enfrentei a ditadura sanguinária. Certamente passamos um pelo o outro nessas
ruas de Santa Maria.
Li que a senhora consola outras mães que perderam seus filhos
nas mesmas circunstâncias em que morreram os seus. A senhora disse que “me doía
ver aquele sofrimento, eles estavam chorando junto comigo, pelos meus filhos.
Foi disso que tirei forças.”
Nessa foto acima a senhora aparece sentada em casa com sua
neta Julia, onde a senhora relembrava as história de vida e de lutas de seus
dois filhos que se foram. Relembrava que “sempre fiz tudo por meus filhos,
sempre fiz o melhor por eles e sempre quis que eles tivessem estudo.” A senhora
não se cansa, pelo contrário, acolhe todos os gestos de conforto, de carinho e
de solidariedade que sua família recebe pela internet e por telefone, com
enorme coração bondoso, embora a dor seja imensurável quando a cada amanhecer a
senhora, como disse à imprensa, se depara com a realidade sem seus dois filhos
amados.
Uma de suas expressões que, além de me doer na alma, me
encheu de esperança, apesar de me colocar no seu lugar e sentir o seu
sofrimento, foi a de que senhora reclama por justiça ao dizer que “quero o povo
comigo, porque não vou perder dois filhos impunemente. Dei a eles tudo o que
precisavam. Agora perco eles e fica por isso? E os parentes das outras vítimas?
Não quero que ninguém me pague nada, não quero dinheiro, isso não traz meus
filhos de volta. Quero é que os responsáveis paguem pelo que fizeram. E todo o
mundo está me apoiando.”
A senhora na verdade
pede justiça. Sua
alma por dentro do seu coração sangrando de dor e de saudade pelas mortes
injustas grita por justiça. Seu grito une-se aos gritos de milhares de pessoas
que se espalham pelo Brasil e pelo mundo, chorando e secando as lágrimas em
solidariedade com a senhora e com todas as famílias enlutadas.
Percebe-se no que a senhora diz que entende que as mortes de
seus filhos Deives e Gustavo foram causadas por ações injustas e por pessoas
injustas. Eles não morreram de causas naturais, mas pela injustiça. A senhora
tem toda a razão. Não deve esmorecer de se somar às outras mães, aos pais e aos
familiares que também perderam seus jovens na boate da ganância e da
irresponsabilidade.
Na verdade, dona Elaine, o que aconteceu aí em Santa Maria
aparece de modo mais contundente pelo fragrante dado pela mídia de todo o
mundo. Apesar da enorme exploração por audiência, essa tragédia, no fundo, é a
maximização de golpes mortais dados todos os dias contra a juventude, contra os
seus sonhos, contra os trabalhadores e contra o povo. Por isso o seu grito por
justiça encontra eco em todas as vidas injustiçadas. O seu grito de mãe e de mulher
lutadora e trabalhadora liga-se às mães da Praça de Maio, em Buenos Ayres, que
durante anos circularam pedindo a derrubada da ditadura e reclamando pelos seus
filhos presos, torturados e mortos pelos bandidos que mataram a democracia. Os lenços em torno de suas cabeças viraram
símbolos eternos das mães que pediam justiça, apesar dos militares assassinos e
a mídia colonizada as apelidarem de loucas da Praça de Maio. Aqui no Brasil
inúmeras mães anônimas peregrinaram pelos quartéis, pelas cadeias, pelos
palácios de governo, pelos fóruns de justiça, pelas delegacias, pelas
embaixadas perguntando e denunciando o desaparecimento de seus filhos engolidos
pela violência do regime velho e apodrecido. Todas elas gritaram por justiça.
Muitas também morreram assassinadas pelo fato de pressionarem e de gritarem com
as “autoridades” na cobrança do sumiço de seus filhos.
Nas lutas empreendidas pelos vários grupos do Movimento dos Sem
Terra vemos pelas estradas as mães usando bonés e camisetas pressionando por reforma
agrária e por justiça na terra. Outras mulheres mães sinalizam perda de maridos
e filhos na guerra com os egoístas proprietários de terras. Elas sofrem, choram
e lutam, sem nunca desistir.
Mulheres como a senhora, dona Elaine, lembram de Anita
Garibaldi que, ao invés de se submeter a um casamento acomodado com um machista
medíocre, lançou-se na luta pela
revolução farroupilha, em busca de justiça contra a dominação imperial e anti
democrática. Graças a isso Anita perdeu filhos e quase morreu em combate, sem nunca
esmorecer.
A senhora, dona Elaine, nos comove. A senhora, provavelmente,
é a mulher mais humilde e trabalhadora, que perdeu dois filhos quase no mesmo
instante, com pouco tempo de diferença entre a morte de um de outro, é sinal de
garra e baluarte da justiça. Não desanime minha irmã. Lembre-se de todas as
mães que perdem seus filhos no esgotamento do trabalho, como produto da
exploração capitalista, que arranca sangue e suor dos trabalhadores. Milhões de
filhos se desesperam e se entregam a variados tipos de drogas, produzidas pelos
mesmos capitalistas que exploram os jovens com baixa qualidade nas diversões,
como aconteceu aí em Santa Maria. Muitas mães são golpeadas de dor ao receber
notícias das mortes de seus filhos no trabalho e nos campos de guerra, de
guerras que eles não criaram. Tudo isso é injustiça. Tudo é matança,
disfarçadas, lentas, mas injustas sempre.
Aceite meu abraço e minha oração com os votos de que a
senhora não se deixe explorar por essa mídia omissa e sedenta de sangue, cujos
jornalistas gostam de ver lágrimas e sofrimento para ter o que fazer e vender.
A senhora faz bem em reclamar justiça. Entre na luta. O povo está com a
senhora. Seja uma líder na luta e ajude milhares de mães a crescer na
consciência de que seus filhos jovens, inteligentes e bonitos podem se rebelar
contra a brutalidade dos egoístas que têm liberdade para explorar e ganhar
sobre seus sofrimentos e necessidades.
Abraços críticos e fraternos, sem desistir da luta pela
justiça e da paz, jamais.
Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e republicano.
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