Dom Orvandil
Moreira Barbosa
Querido camarada Oscar Niemeyer
Ontem, como todo o nosso povo brasileiro, que tanto amavas,
sofremos imensurável impacto com a triste notícia de teu adeus.
Postei-me à frente de vários canais de TV até à madrugada
para assistir as manifestações de inúmeras personalidades a respeito de tua
vida e de tua morte. Conectei-me à internet para nos noticiários eletrônicos e
redes sociais acompanhar o que muitos de nosso povo diziam e escreviam.
À noite não dormi direito com saudades de ti e furioso com a
morte, aquela que faz “o sopro da vida”, como definiste a existência, apagar- se.
Cedo hoje meu amigo e camarada Laércio me ligou para
compartilhar a dor de te perdermos. O que podemos fazer? disse-me ele.
Referiu-se à grande obra do pensamento socialista que ajudaste a erigir em
nosso País, talvez a que mais amaste.
Sou crente, sou cristão, mas sou socialista e revolucionário.
Encontrei durante o sopro de minha existência poucos santos entre os cristãos e
igrejeiros. Aliás, na verdade encontrei muito santo do pau oco, muito santo de
araque. Já comentei aqui que conheci, por exemplo, bispos que nunca tomarei
como exemplo a seguir. São mais satanases do que santos. Na condição de sacerdote
sempre tive que atuar sob o governo de algum bispo. Por isso com tristeza
cumpria-me a obrigação de receber sua visita na paróquia sob minha
responsabilidade e, por consequência, em minha família. Vivi a amarga
experiência de agir numa diocese no RS sob o episcopado de um infeliz indivíduo
cujas visitas à minha paróquia eram verdadeiras desgraças. Começava que optava
por se hospedar nos melhores hotéis da cidade por considerar minha casa muito
simples. Quando ia à minha casa nada dizia, porque nada tinha a dizer a um
lutador, pois sua vida era pura mistura de visão burguesa com densa superficialidade.
Nos almoços com a comunidade, cujas pessoas do povo queriam homenageá-lo, via
de regra, sentava-se ao lado dos mais aquinhoados para falar de automóveis do
ano e bobagens. Numa das visitas me entristeci muito quando pessoas do povo me
procuraram para expressar sua decepção e mágoa por se sentirem
desprezadas pelo bispo. As frases que usaram doeram-me aos ouvidos como
lamentável verdade: “esse bispo não está com nada”, “esse cara é falso bispo”, “onde
se viu um bispo desprezar os pobres em preferência aos mais ricos?”. Claro, trabalhei
com bispos cristãos porque solidários com o povo. Recordo-me de um dos melhores que pisou esse solo
brasileiro. Trata-se do bispo Isac Aço, do RS, tragicamente morto. Um homem
culto, afeito ao estudo e que amava o povo, principalmente comiserava-se com os
pobres e tinha a justiça como causa de luta. Emociono-me lembrar dele sentado
em troncos de árvores numa favela em Porto Alegre, onde eu trabalhava, ao
almoçar numa refeição comunitária servida pelos pobres moradores de lá, muitos
deles vítimas em frangalhos do capitalismo anárquico e bandido. Levou prato e
talheres de casa para servir-se da boia boa compartilhada com o povo. Interessante,
ele se esqueceu do prato e dos talheres que levara de casa, mas com que alegria
o povo guardou-os para lhes entregar noutra oportunidade. Se fosse com aquele
outro bispo, que como o Gen. Figueiredo que preferia o cheiro dos cavalos ao do
povo, as pessoas da favela não lhe entregariam prato e talheres, certamente.
Essa gente me cansa, Oscar. Não gosto de sua santidade, de
suas rezas, de suas fervorosas orações, de suas missas, de seus cultos e
pregações. Felizmente em minha diocese não tenho padres preguiçosos e que se enojem
do povo, como aquele bispo queridinho das madames da catedral. Prefiro milhões
de vezes a tua santidade. És um ateu santo. És um santo ateu. Não segues o deus
do tipo seguido por aquele bispo que tem asco do povo e que gosta das futilidades
da burguesia, dos perfumes mal cheirosos dos que exploram o trabalho alheio.
Muitos ditos cristãos, que abandonaram o Jesus de Nazaré,
aliado aos pobres, das prostitutas, dos publicanos, enfim, dos miseráveis
injustiçados da Palestina de seu tempo, não se referem ao povo nem se
solidarizam com a revolução solidária como tu. Pelo contrário, eles substituíram
o Jesus descalço, caminhante empoeirado por um Cristo imperial e ornamentado a
ouro, serviçal dos poderosos e opressores.
Numa das entrevistas que deste, gravada para eternidade, demonstraste
indignação com a marginalização dos verdadeiros construtores de Brasília, os
chamados candangos. Disseste que eles deveriam morar nos melhores lugares da
capital brasileira. Lamentaste que eles fossem jogados longe de Brasília e no seu
entorno vivam na miséria. Recordaste que eles migraram de todos os recantos do
Brasil em busca de trabalho e de habitação. Contudo, esquecidos da obra que
construíram, foram jogados à margem da arte e da vida.
Querido santo Niemeyer, eras ateu mas construíste as mais
belas obras de arte em forma de arquitetura e de templos. Inspiraste-te nas curvas
dos rios, das montanhas e dos corpos das mulheres perfeitas (todas são). Quem entra
nos templos por ti desenhados e arquitetados eleva-se ao louvor a Deus criador,
de quem as obras do universo te inspiraram.
Por isso prefiro tua inspiração do que a dos que se dizem
teístas mas não titubearam em enfiar facões e serras nos corpos de indígenas,
escravos e árvores, em busca estúpida de riquezas e na destruição da natureza.
Eras um contemplativo do universo, diferente de muitos que rezam nos templos
para depois emporcalharem a natureza.
Como disse Leonardo Boff a Darci Ribeiro na hora da morte, quando
este lamentava não ter fé: não te preocupes, encontrarás com Deus que te
acolherá em seus braços compassivos. Leonardo disse a Darci que, já que ele amava
as mulheres, poderia se surpreender ao ser recepcionado por um Deus mulher, Deus feminino, Deus mãe.
Não importa, Oscar, que não cresses como gente metida e
religiosa mas que nada faz pelo próximo, pela arte e pelo universo. O que
interessa é teu humilde testemunho de amor ao povo, ao Brasil, à tua família.
Vi hoje tua mulher chorando e dizendo: “eu perdi a pessoa que mais amava, eu
perdi tudo”. Isso ela disse, Niemeyer, porque tua a amaste profundamente. As
mulheres são assim mesmo: elas são puro amor, quando amadas dão todo o amor que
as faz ser.
Choro muito desde ontem, quando saíste daqui. Choro de tristeza
e de saudade. Mas também choro de amor pelo irmão brasileiro que soube viver a
essência de Deus, que é a de amar. Sei que é isso que o Brasil e o mundo todo
sentimos, querido e amado comunista Oscar Niemeyer. Tenho o privilégio, embora
insignificante, de ser sonhador e lutador de teu sonho e de tua luta por uma
sociedade justa. Gostaria de demorar um pouco mais por aqui na luta pela
realização de teu sonho. Mas se tiver que ir, com gosto quero lutar ao teu lado
pelos universos e pela construção de templos da arte.
Saudades. Abraços críticos e fraternos desse bispo revolucionário,
cabano, farrapo e republicano.
Zelito Ferreira da Silva
ResponderExcluirMuito bom texto, bispo Compatilho do seu pensamento.
Zelito Silva