Diferentemente do que se costuma difundir, no mundo árabe, o protagonismo feminino nos campos de batalha e em diversas áreas do conhecimento é histórico.
Por Soraya Misleh, em Escrevinhador
As revoluções no mundo árabe vêm derrubando não só ditaduras e trazendo à tona suas relações com o império. Vêm também desconstruindo estereótipos. Entre eles, as tão frequentes quanto equivocadas generalizações em relação às mulheres árabes.
No Brasil e em várias partes do globo, a imagem transmitida por agências de notícias internacionais e mídias corporativas é de um grupo absolutamente homogêneo. São mulheres cobertas com véus, submissas, que escondem uma sensualidade intrínseca por trás de suas pesadas roupas, normalmente de cor escura. O colorido da diversificada e rica sociedade árabe é deliberadamente omitido.
O primeiro mito que as revoluções que tiveram início na Tunísia em fins de 2010 e se alastraram por diversos países colocou por terra foi de que essas mulheres jamais se colocariam na linha de frente das batalhas por direitos. Os levantes que derrubaram até agora quatro ditaduras – e continuam em curso – demonstraram que seu protagonismo foi e tem sido fundamental para pôr fim a regimes opressores.
No Egito, é comum a cena de milhares de mulheres na Praça Tahrir. Ao se congelar essa imagem, outro mito é desfeito: o de que todas elas usam véus. O senso comum, fundamentado na ideia de que toda árabe é muçulmana, é desafiado (como se não houvesse outras religiões ou nenhuma fé no seio dessas sociedades e todas as islâmicas usassem obrigatoriamente véu, o que também é uma falácia). Há mulheres cobertas, descobertas, com roupas de todo tipo, como em qualquer outra sociedade.
A ideia de que as muçulmanas estão à margem desses processos também é desmontada no curso das revoluções. A egípcia feminista Nawal El Saadawi, que pôde ser vista ao lado de outras lutadoras nas grandes manifestações na Praça Tahrir, explica em seus escritos que o Islã chega a ser mais suave no que se refere às diferenças de gênero. O que ocorre é que a religião tem sido usada como meio de dominação, mediante distintas interpretações, de modo a favorecer o grupo político hegemônico e manter a opressão de classe.
O que ainda está por ser desconstruído é a ideia de que a participação feminina em revoluções no mundo árabe é novidade. Quem elucida esse tema é Nawal. Em seu único livro traduzido para o português, “A face oculta de Eva – as mulheres do mundo árabe”, ela salienta: “A história tem descrito, com falsidade, muitos dos fatos relacionados ao sexo feminino. As mulheres árabes não são mentalmente deficientes, como os homens e a história, escrita por eles, tendem a afirmar, tampouco são frágeis e passivas. Ao contrário, as árabes mostraram resistência ao sistema patriarcal centenas de anos antes que as americanas e europeias se lançassem a essas mesmas lutas.”
Sistema esse que passou a predominar a partir do surgimento da noção de propriedade privada e divisão de classes, como ensina Nawal em sua obra. Em tempos ancestrais, em que predominava o nomadismo e a agricultura de subsistência, as mulheres detinham a igualdade em assuntos sociais, econômicos e na esfera política.
Destituídas dessa posição e relegadas às camadas sociais inferiores, as mulheres da região, assim como em outras partes do globo, vêm assumindo a linha de frente na oposição a esse status quo. Assim, ao longo dos séculos, têm desempenhado papel fundamental nas lutas contra o colonialismo, a dominação, por direitos, justiça.
Não poderia ser diferente: acabar com a desigualdade de gênero é bandeira crucial na transformação dessas sociedades. Nesse ponto, Nawal é categórica: “Enquanto os assuntos do Estado ou do poder administrativo forem delegados à mulher dentro de uma estrutura social de classes, baseada no capitalismo e no sistema familiar patriarcal, homens e mulheres hão de permanecer vítimas da exploração.” Mudar esse estado de coisas mantém-se na ordem do dia de muitas mulheres.
Protagonismo histórico
Em seu livro, Nawal descreve uma série de acontecimentos que não deixam dúvidas de seu protagonismo histórico em diversas áreas – nos campos de batalha, na literatura, na poesia. Ela cita diversos nomes femininos que inclusive combateram nas fileiras do profeta Maomé ou contra ele e seus seguidores, na era islâmica. As próprias esposas do profeta eram exemplos de mulheres firmes, que não abriam mão de seus direitos.
Dando um salto no tempo até o início do século 20, a escritora relata que no Egito foram as mulheres as primeiras a deflagrar greves, ocupar fábricas e marchar por direitos. Participaram ativamente na revolução nacional de 1919, contra o imperialismo britânico. No país, em 1923, foi fundada a Federação das Mulheres. Em outra revolução, em 1956, arrancaram o direito a voto.
A autora complementa: “O Egito não foi o único país árabe no qual a mulher participou ativamente na luta contra o imperialismo estrangeiro e a opressão interna. A mulher em todo o mundo árabe lutou ombro a ombro com o homem pela libertação nacional e pela justiça social.”
Na Síria, no Líbano e na Argélia, tiveram papel fundamental contra a ocupação francesa. No Iraque, também se opuseram ao imperialismo e contribuíram “para acelerar as transformações sociais”. Na Jordânia, historicamente têm “organizado a luta nas frentes sociais, políticas ou econômicas”. No Sudão, tiveram papel destacado no movimento nacional de libertação contra os ingleses. No Kuwait, na Líbia, no Iêmen, no Marrocos, têm dado sua contribuição por justiça e liberdade.
Na Palestina, foram pioneiras em protestar contra a instalação dos primeiros assentamentos sionistas ainda no final do século 19, com fins coloniais – e têm resistido aos mais de 60 anos de ocupação israelense na linha de frente. “A extensa lista de mártires serviria para encher as páginas de todo um capítulo, mas entre as mais conhecidas estão Leila Khaled, Fátima Bernaw, Amina Dahbour, Sadis Abou Ghazala e outras cujos feitos intrépidos um dia serão admirados pelas futuras gerações de jovens e mulheres.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seus comentários serão publicados. Eles contribuem com o debate e ajudam a crescer. Evitaremos apenas ofensas à honra e o desrespeito.