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O sistema escravocrata possuía os mais bárbaros instrumentos de tortura
como forma de manter, pelo terror, a dominação sobre os negros. A
palmatória foi instrumento de castigo aplicado nas casas-grandes e
senzalas, em escravos, assim como nas crianças, sendo um método
pedagógico utilizado para moldar comportamentos e hábitos.
Escravo no pelourinho sendo açoitado. Gravura de Debret, 1835.
Quem tortura o escravo negro amarrado é outro negro, enquanto muitos outros assistem.
Prezado
Jetro
Dediquei aqui discussões sobre alguns ângulos de atuação da
direita no Brasil. Antes deste de hoje escrevi seis artigos abordando a insensibilidade
e a hostilidade do vocabulário grotesco e agressivo com que ativistas ou meros
lunáticos de direita tratam as pessoas e as ideias diferentes das suas. A
linguagem que usam vai da oral, passando por redações sem fundamento,
carregadas de preconceitos a gestos imensamente rudes e hostis, como muitas
manifestações de rua mostram.
Depois dos dois pontos dividi os vários artigos com intenção de fazê-los subtítulos para identificar as bases comuns de tudo o que os
direitistas fazem nas suas várias expressões. Nos partidos atuam como grupos burocráticos
usados como barricadas de ataque à sociedade e à democracia, no afã de boicotar o desenvolvimento soberano com distribuição de renda no País. Na sociedade optam
por acúmulos de privilégios e concentrações de poder, sempre de modo
antissocial. Na religião são fanáticos, fundamentalistas, não raro
absolutizam seus dogmas e experiências como superiores aos dos outros
mortais. Sua conduta dita religiosa é de direita na defesa de teses
conservadoras, racistas, homofóbicas e falsas. Quando se dizem intelectuais o
fazem de modo arrogante, sobrepondo-se à realidade, custe o que custar, mesmo que tudo redunde e falsificação, mesmo com ar de sagrado. Os
direitistas outrora de esquerda deixaram e deixam rastro melancólico de ódio e
de destruição, como sobejamente mostra a história do Brasil.
Hoje, Jetro, encerro esta série tratando de outro aspecto com
o qual a direita se envolve gravemente. Inspiro-me da tese de Hegel, muito bem
construída na metáfora da dialética do senhor e do escravo, que o filósofo
alemão trabalhou na sua maior obra, a fenomenoligia de espírito.
A alegoria tratada primeiramente por Hegel foi interpretada
por filósofos e psicanalistas depois dele, principalmente por Lacan. Aqui no Brasil Paulo Freire e Leonardo Boff abordaram brilhantemente aquela alegoria. Muito se escreveu e se disse sobre a
dialética do senhor e do escravo.
Em resumo é possível entender que o senhor e o escravo são dois
polos da mesma realidade social. O senhor não existe sem o escravo como o
escravo não se explica sem o senhor.
O trágico é que o senhor ao justificar-se sobre o escravo não
seja capaz de reconhecer que é ele que depende objetiva e essencialmente do escravo, da sua força de trabalho e do seu sacrifício no altar da exploração. Pelo contrário,
na sua sombria inversão da realidade o senhor pensa e discursa que o escravo é
que depende dele e que a ele deveria ser grato.
Na ilusão ideológica de que é o escravo que depende do senhor este o
oprime, o rouba, retira-lhe a liberdade, o suga à exaustão, porque vive à custa
do suor, da energia, da saúde e da vida do escravo. Não seria senhor se escravizasse outro ser humano. Pior e mais desastroso é que o senhor toma conta da alma, dos
sentimentos e ainda sabota a consciência do escravo. Assim, este o admira, o
copia, o homenageia, o cultua e o internaliza, seja por amor ou ódio ao senhor.
O senhor pensa-se com a missão de ajoelhar o escravo e mantê-lo cego à verdade
da vida e da realidade, inclusive de seus próprios potenciais como pessoa. O olhar do
escravo é notadamente induzido a “perceber” o mundo como o senhor o desenha, onde ele é rendido e amordaçado sem direito à consciência e à verdade.
A forma mais espantosa que o senhor usa para render o
escravo, que os gregos criam sem alma, na verdade dotado da alma do senhor, é a
ideologia. Esta é de tal modo escurecedora da consciência dos valores humanos
do escravo que este se nega a si mesmo para proclamar o senhor como único bem
aventurado a viver e a desfrutar dos bens da vida, extraídos da natureza pelas mãos feridas do escravo: a liberdade, a
sociabilidade, a cultura, a abundância, riquezas e até o esbanjamento. Os “direitos”
do senhor são eloquentes graças à miséria a que o escravo é relegado e
marginalizado.
Mais interessante ainda é o mecanismo ideológico “chipado” no
escravo que, graças aos seus sacrifícios e trabalho, mantém o gozo do senhor: o
escravo “engaveta” o senhor em seus desejos e ideais ao ponto de almejar ser
senhor para escravizar outros seres humanos. Noutras palavras, o escravo sonha
ser senhor porque carrega o senhor opressor e escravocrata em sua alma, como
motor de seu ser e de seus sonhos.
Esse é o grande e fantástico “milagre” herdado pela direita
capitalista e neoliberal: ela manipula de tal forma a multidão de escravos e
faz com que a admirem, acreditem em suas mistificações e paralisem de medo das ameaças que lhe impõem.
Marx, ao examinar as sociedades alemã, romana e francesa,
neste caso, o fenômeno da revolução burguesa de 1779, percebeu um tipo social
de seres humanos tão empobrecidos, explorados, degradados e marginalizados
pelos senhores econômicos, que se deu conta da grande manobra sob a qual se
desumanizavam certos setores sociais de pobres, dos mais empobrecidos. Havia
dois tipos desses setores, ambos vendidos e prostituídos pelos senhores. Denominavam-se
lumpemproletários. Essa palavra provém do alemão “lumpe”, que quer dizer pessoa
desprezível; lumpen, trapo, farrapo + proletrariat, proletariado. Numa primeira
classificação é uma população formada por miseráveis desorganizados social e
politicamente, suscetíveis de servir aos interesses da burguesia, sem
capacidade de construir consciência de classe, a classe trabalhadora. Sua
miserabilidade ultrapassa as carências econômicas para alcançar a consciência:
são miseráveis de consciência social. Facilmente traem sua classe em troca das
migalhas oferecidas pela burguesia, pela classe dos senhores. Estes sabem dessa
possibilidade, por isso os conservam sob controle, destinando-lhes a categoria
de exército de reserva.
Outra categoria de lumpemproletários é a dirigida por agentes
dos senhores, no caso registrado por Marx o exemplo das seções secretas de
lumpemproletários conduzidos por agentes, por sua vez comandados por um general
bonapartista, com o objetivo de golpear a revolução e impor os interesses da
classe dominante na manutenção dos privilégios. Marx denomina Luiz Bonaparte
de boêmio e de ser lumpemproletário da burguesia. Ao lado desse boêmio
alinham-se setores retrógrados da burguesia anti revolucionária, intelectuais
reacionários, a classe média, o clero e a classe rural, todos
lumpemproletários, trapos morais.
O filósofo Walter Benjamin se refere a esse setor boêmio identificado
por Marx como “conspiradores profissionais”. Não pertencem à classe operária
nem à burguesia. São médios. Atribuem-se à missão de substituir os partidos e
os sindicatos em favor da baderna e da boemia. Ferem de morte a ética do
trabalho e a concepção da roda da história que se move revolucionariamente para
frente e para cima. São, numa dupla definição, trapos humanos que se vestem de
trapos morais. Conheço vários desses, inclusive alguns de consideram muito letrados, porém por ser oportunistas, encostados em reacionários e de se cercarem deles e de suas manipulações, comportam-se traiçoeira e fofoqueiramente como lumpemproletários. Seus mesquinhos interesses atuam em primeiro lugar, sem respeito aos direitos dos outros.
Pois bem Jetro, harmonizando as definições de
lumpemproletários com a dialética escravo-senhor, pode-se dizer que há setores tão inconscientes
na sociedade brasileira, tanto entre os trabalhadores, principalmente entre os
mais explorados, e entre a tal classe média, ao ponto de esses sujeitos serem guardiões do senhor
opressor, escravizador e assassino do ser humano e do trabalho, que tudo faz
para impedir a marcha progressiva da história e da vida.
O professor André Singer (aqui),
num pequeno artigo, examina uma pretensa pesquisa de opinião que conclui que a
metade dos pesquisados considera negativamente os sindicatos, rendida aos
senhores opressores. Note-se bem, André Singer chama a atenção que os
sindicatos são historicamente fundamentais na organização da classe
trabalhadora na sociedade capitalista. Sem eles os trabalhadores são vulneráveis
à opressão da classe proprietária dos meios de produção, da classe dos senhores
que esmagam e delapidam a humanidade dos escravos.
O querido sociólogo Emir Sader (aqui)
analisa essa mesma pesquisa e conclui que na verdade há avanço na avaliação do
povo em face da desmoralização do neoliberalismo. O povo ao se beneficiar com
os programas sociais objetivos começa a expulsar de sua alma o senhor
escravizador, que usa todos os meios lumpemproletários no esmagamento de
sua consciência. Escreveu Sader no mesmo texto: “Na era neoliberal, os eixos centrais dos
debates e das polarizações se alteraram significativamente. A direita impôs seu
modelo liberal renascido, marcado pela centralidade do mercado, do livre comércio,
da precarização das relações de trabalho, do capital financeiro como
hegemônico, do consumidor. Ao mesmo tempo da desqualificação das funções
reguladores do Estado, das políticas redistributivas, da política, dos
partidos, dos direitos da cidadania. Os brasileiros tem se pronunciado, reiteradamente, a favor
das prioridades de distribuição de renda, do papel ativo do Estado, das
políticas de integração regional e intercâmbio Sul-Sul.”
Concluo que a dialética senhor-escravo é ainda verdade prática e ativa em
nossa sociedade. A luta é gigantesca para alcançar a libertação dos escravos em
relação aos seus senhores. Os meios lumpemproletários usados são variáveis e poderosos com o
objetivo de fazer os escravos obedientes aos senhores. A mídia movimenta-se com
seus artifícios tecnológicos para engambelar os escravos e mantê-los embevecidos
pelos senhores e o seu falso mundo. A direita grita desde as barricadas de seus partidos contra as conquistas populares. O império poderoso espiona e se arma para assaltar nossas riquezas, a nossa soberania e nossos direitos sociais. A educação pública ainda é limitada no alcance
estatístico do povo e na qualidade. O ensino privado tem seu interesse centralizado na tesouraria
e não nos direitos à educação dos alunos e sociais dos professores.
Os lumpemproletários “conspiradores
profissionais” boêmios e preguiçosos atuam diuturnamente para destruir os
direitos sociais arduamente conquistados pelo povo, ainda que parciais e iniciais.
Vejo setores evangélicos e católicos romanos acirrando divisões através de
mentiras e apego a pontos moralistas-farisaicos setoriais, que eles adoram
absolutizar, numa prática fundamentalista fanática, divisionista fraticida e pronta para a guerra,
favorecendo a direita e sua política de geração de escravos calados e covardes. Ressalto, no entanto que reconheço grandes seguimentos de cristãos católicos e evangélicos marcadamente progressistas libertários e não lumpemproletários. De outro lado muitos que se filiaram a igrejas evangélicas e a grupos católicos conservadores se cansam das cangas pesadas reacionárias e moralistas impostas por chefias donos de igrejas e se afastam para preservar sua integridade e até saúde mental. Libertam-se das imposições para servirem de guardiões traiçoeiros dos escravos amarrados nas torturas promovidas pela direita escravocrata e golpista.
Em 2014 vivenciaremos mais uma experiência democrático
eleitoral. Porém, a luta por “dessenhorizar” o escravo na expulsão do senhor é
permanente, anterior e posterior às eleições.
A luta já nos possibilitou até aqui o enfraquecimento da
direita neoliberal que atendeu o gozo dos senhores, que se locupletaram dos
sacrifícios e energias do povo feito escravo. A agenda da luta indica que há
muito por fazer no sentido de libertarmo-nos dos dois tipos de
lumpemproletários que nos guiam às trevas dos atraso, do retrocesso e das correntes da escravidão de todos os tipos.
Emir Sader sabiamente aconselha: “Ser de esquerda hoje é
lutar contra a modalidade assumida pelo capitalismo no período histórico
contemporâneo, é ser antineoliberal, em qualquer das suas modalidades. A
moderação ou a radicalidade estão nas formas de articulação, ou não, entre o
antineoliberalismo e o anticapitalismo.”
Viva o escravo na sua ânsia de expulsar o senhor. Viva a
morte do senhor em nós!
Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz.
Dom Orvandil: bispo cabano, farrapo e republicano.
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