Reproduzido pelo blog Limpinho & Cheiroso
Jaime Amparo Alves, via Pragmatismo Político
Os brasileiros no exterior que acompanham o noticiário brasileiro
pela internet têm a impressão de que o país nunca esteve tão mal.
Explodem os casos de corrupção, a crise ronda a economia, a inflação
está de volta, e o país vive imerso no caos moral. Isso é o que querem
nos fazer crer as redações jornalísticas do eixo Rio–São Paulo. Com seus
gatekeepers escolhidos a dedo, Folha de S.Paulo, Estadão, Veja e O Globo
investem pesadamente no caos com duas intenções: inviabilizar o governo
da presidenta Dilma Rousseff e destruir a imagem pública do
ex-presidente Lula da Silva. Até aí nada novo.
Tanto Lula quanto Dilma sabem que a mídia não lhes dará trégua,
embora não tenham – nem terão – a coragem de uma Cristina Kirchner de
levar a cabo uma nova legislação que democratize os meios de comunicação
e redistribua as verbas para o setor. Pelo contrário, a Polícia Federal
segue perseguindo as rádios comunitárias e os conglomerados de mídia
Globo/Veja celebram os recordes de cotas de publicidade governamentais. O
PT sofre da síndrome de Estocolmo – aquela na qual o sequestrado se
apaixona pelo sequestrador – e o exemplo mais emblemático disso é a
posição de Marta Suplicy como colunista de um jornal cuja marca tem sido
o linchamento e a inviabilização política das duas administrações
petistas em São Paulo.
O que chama a atenção na nova onda conservadora é o time de
intelectuais e artistas com uma retórica que amedronta. Que o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso use a gramática sociológica para
confundir os menos atentos já era de se esperar, como é o caso das
análises de Demétrio Magnoli, especialista sênior da imprensa em todas
as áreas do conhecimento. Nunca alguém assumiu com tanta maestria e com
tanta desenvoltura papel tão medíocre quanto Magnoli: especialista em
políticas públicas, cotas raciais, sindicalismo, movimentos sociais,
comunicação, direitos humanos, política internacional… Demétrio Magnoli é
o porta-voz maior do que a direita brasileira tem de pior, ainda que
seus artigos não resistam a uma análise crítica.
Agora, a nova cruzada moral recebe, além dos já conhecidos defensores dos “valores civilizatórios”, nomes como Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro.
A raiva com que escrevem poderia ser canalizada para causas bem mais
nobres se ambos não se deixassem cativar pelo canto da sereia. Eles
assumiram a construção midiática do escândalo, e do que chamam de
degenerescência moral, com o fato. E, porque estão convencidos de que o
país está em perigo, de que o ex-presidente Lula é a encarnação do mal, e
de que o PT deve ser extinguido para que o país sobreviva, reproduzem a
retórica dos conglomerados de mídia com uma ingenuidade inconcebível
para quem tanto nos inspirou com sua imaginação literária.
Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro fazem parte agora daquela intelligentsia
nacional que dá legitimidade científica a uma insidiosa prática
jornalística que tem na Veja sua maior expressão. Para além das
divergências ideológicas com o projeto político do PT – as quais eu
também tenho –, o discurso político que emana dos colunistas dos
jornalões paulistanos/cariocas impressiona pela brutalidade. Os mais
sofisticados sugerem que a exemplo de Getulio Vargas, o ex-presidente
Lula cometa suicídio; os menos cínicos celebraram o “câncer” como a
única forma de imobilizá-lo. Os leitores de tais jornais, claro,
celebram seus argumentos com comentários irreproduzíveis aqui.
Quais os limites da retórica de ódio contra o ex-presidente
metalúrgico? Seria o ódio contra o seu papel político, a sua condição
nordestina, o lugar que ocupa no imaginário das elites? Como figuras
públicas tão preparadas para a leitura social do mundo se juntam ao coro
de um discurso tão cruel e tão covarde já fartamente reproduzido pelos
colunistas de sempre? Se a morte biológica do inimigo político já é
celebrada abertamente – e a morte simbólica ritualizada cotidianamente
nos discursos desumanizadores – estaríamos inaugurando uma nova etapa no
jornalismo lombrosiano?
Para além da nossa condenação aos crimes cometidos por dirigentes dos
partidos políticos na era Lula, os textos de Demétrio Magnoli , Marco
Antônio Villa, Ricardo Noblat, Merval Pereira, Dora Kramer, Reinaldo
Azevedo, Augusto Nunes, Eliane Cantanhede, além dos que agora se somam a
eles, são fontes preciosas para as futuras gerações de jornalistas e
estudiosos da comunicação entenderem o que Perseu Abramo chamou
apropriadamente de “padrões de manipulação” na mídia brasileira. Seus
textos serão utilizados nas disciplinas de ontologia jornalística não
apenas com os exemplos concretos da falência ética do jornalismo tal qual entendíamos até aqui,
mas também como sintoma dos novos desafios para uma profissão cada vez
mais dominada por uma economia da moralidade que confere legitimidade a
práticas corporativas inquisitoriais vendidas como de interesse público.
O chamado “mensalão” tem recebido a projeção de uma bomba de Hiroshima não porque os barões da mídia e os seus gatekeepers
estejam ultrajados em sua sensibilidade humana. Bobagem! Tamanha
diligência não se viu em relação à série de assaltos à nação
empreendidos no governo do presidente sociólogo! A verdade é que o
“mensalão” surge como a oportunidade histórica para que se faça o que a
oposição – que nas palavras de um dos colunistas da Veja “se
recusa a fazer o seu papel” – não conseguiu até aqui: destruir a
biografia do presidente metalúrgico, inviabilizar o governo da
presidenta Dilma Rousseff e reconduzir o projeto da elite “sudestina” ao
Palácio do Planalto.
Minha esperança ingênua e utópica é que o Partido dos Trabalhadores
aprenda a lição e leve adiante as propostas de refundação do país
abandonadas com o acordo tácito para uma trégua da mídia. Não haverá
trégua, ainda que a nova ministra da Cultura se sinta tentada a
corroborar com o lobby da Folha de S.Paulo pela lei dos direitos
autorais, ou que o governo Dilma continue derramando milhões de reais
nos cofres das organizações Globo e Abril via publicidade oficial. Não é
o PT, o Congresso Nacional ou o governo federal que estão nas mãos da
mídia.
Somos todos reféns da meia dúzia de jornais que definem o que é
notícia, as práticas de corrupção que merecem ser condenadas, e,
incrivelmente, quais e como devem ser julgadas pela mais alta corte de
Justiça do país. Na última sessão do julgamento da ação penal 470, por
exemplo, um furioso ministro-relator exigia a distribuição antecipada do
voto do ministro-revisor para agilizar o trabalho da imprensa (!). O
STF se transformou na nova arena midiática onde o enredo jornalístico do
espetáculo da punição exemplar vai sendo sancionado.
Depois de cinco anos morando fora do país, estou menos convencido por
que diabos tenho um diploma de jornalismo em minhas mãos. Por outro
lado, estou mais convencido de que estou melhor informado sobre o Brasil
assistindo à imprensa internacional. Foi pelas agências de notícias
internacionais que informei aos meus amigos no Brasil de que a política
externa do ex-presidente metalúrgico se transformou em tema padrão na
cobertura jornalística por aqui. Informei-lhes que o protagonismo
político do Brasil na mediação de um acordo nuclear entre Irã e Turquia
recebeu atenção muito mais generosa da mídia estadunidense, ainda que
boicotado na mídia nacional. Informei-lhes que acompanhei daqui o
presidente analfabeto receber o título de doutor honoris causa em
instituições europeias, e avisei-lhes que por causa da política soberana
do governo do presidente metalúrgico, ser brasileiro no exterior passou
a ter uma outra conotação. O Brasil finalmente recebeu um status de
respeitabilidade e o presidente nordestino projetou para o mundo nossa
estratégia de uma América Latina soberana.
Meus amigos no Brasil são privados do direito à informação e
continuarão a ser porque nem o governo federal nem o Congresso Nacional
estão dispostos a pagar o preço por uma “reforma” em área tão
estratégica e tão fundamental para o exercício da cidadania. Com 70% de
aprovação popular, e com os movimentos sociais nas ruas, Lula da Silva
não teve coragem de enfrentar o monstro e agora paga caro por sua
covardia. Terá a Dilma coragem com aprovação semelhante, ou nossa meia
dúzia de Murdochs seguirão intocáveis sob o manto da liberdade de
e(i)mprensa?
Jaime Amparo Alves é jornalista e doutor em Antropologia Social pela Universidade do Texas.
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