O diabo no meio do mensalão
Por Miguel do Rosário no O Cafezinho
(Guimarães Rosa, autor de Grande Sertão Veredas)
O diabo existe? A pergunta é falsamente ingênua,
porque esconde uma dúvida metafísica muito complexa sobre a existência ou não
do mal. Riobaldo, o protagonista de Grande Sertão, acha que todos os sábios do
mundo deveriam se reunir para decidirem, de uma vez por todas, se há ou não um
capeta assombrando o mundo.
A mídia brasileira encontrou, nos ministros do
Supremo Tribunal Federal, os sábios que faltaram à Riobaldo: sete juízes
entenderam que sim, que o diabo existe, ou seja, que o mensalão foi compra de
voto de parlamentares.
A Procuradoria, as CPIs e toda a mídia brasileira,
passaram quase sete anos à procura de um testemunha ou prova consistente que
afirmasse a tese da compra de voto. Centenas – talvez milhares – de pessoas
foram interrogadas, entrevistadas, devassadas, e todos asseguraram que não, que
não houve venda de voto. Não importa. A nossa democracia agora é governada por
sete sábios. São eles que dão a palavra final.
O STF produziu uma armadilha para si mesmo, e
entrou nela. Desde o início dos debates, muita gente via, estarrecida, que os
ministros enveredavam por uma trilha perigosíssima, ao estabelecerem que não
havia necessidade de provas ou “atos de ofício” para condenarem os réus. Então,
quando todos achavam que o festival de arbitrariedades havia atingido o clímax,
eis que ele piora, e o ministros, constrangidos pela dificuldade em condenar
sem “ato de ofício”, decidem que o ato de votar é o crime final do parlamentar
envolvido no escândalo do mensalão.
Os ministros, no afã de demonstrar a existência
do Dito-Cujo, trouxeram-no para dentro do tribunal. Em algum momento dos
debates, veremos um redemoinho de papéis num canto do salão. É ele mesmo, o
Sem-Nome, rindo-se dos juízes, da imprensa, de nós todos.
Outrora dizia-se que ainda havia juízes em
Berlim. Grande ironia da história! Quando a democracia desaba, encontra-se um
ou dois juízes tentando salvá-la. Quando a democracia chega a seu momento mais
pujante, eis a maioria dos juízes disputando quem a violenta primeiro.
Por sorte ainda temos Wanderley Guilherme, e
Blaise Pascal. O primeiro nos lembra o óbvio: que todo acordo eleitoral implica
em convergência política. Quando dois partidos fazem um acordo, não é para
“inaugurar retratos” nas respectivas sedes. Consegue-se o apoio de uma legenda
com o fim de que seus parlamentares concretizem essa parceria na forma de
votos. E apoio político, numa democracia altamente concorrencial e capitalista
como a brasileira, implica, necessariamente, em acordos eleitorais envolvendo
despesas de campanha. Criminalizar isso é criminalizar a própria democracia. É
glorificar a hipocrisia.
Se o mensalão foi compra de votos, ou seja, se o
governo comprou a consciência dos políticos, então a reeleição de Fernando
Henrique Cardoso foi o quê? A própria Constituição de 1988 teria sido
“comprada”? Sim, porque não é sensato pensar que os parlamentares que a
promulgaram não receberam dinheiro para tocar suas respectivas campanhas, sendo
que boa parte desses recursos, provavelmente, não foi contabilizada. A sabatina
de cada ministro do STF também não foi objeto de comércio ilegal? Como o STF
pode saber, aliás, qual exatamente foi o voto comprado? Um parlamentar pode
receber dinheiro hoje por um voto que já deu na semana anterior. Pode receber
adiantado para votar daqui a um mês. Ou seja, até a “coincidência” da datas,
que os juízes estão ridiculamente usando como indício de crime, não significa
absolutamente nada!
O que os ministros estão fazendo, para o deleite
da mídia conservadora, é criminalizar a política brasileira. O discurso de
Celso Mello, ontem, representou uma agressão insuportável aos valores
democráticos e à nossa própria soberania. Foi um discurso de golpe, com o qual
se poderia justificar qualquer violência contra o sufrágio popular. Todos os
preconceitos que emergiram com a vitória de Lula voltaram a se manifestar, com
força total, nos recentes discursos desses magistrados. Por que não agiram com
ira similar quando o réu era Daniel Dantas, um dos maiores corruptores de
políticos de que se tem notícia?
Pascal, por sua vez, lembra-nos que “nada é justo
em si” e que “nada é tão falível como essas leis que reparam as faltas: quem
lhes obedece, porque são justas, obedece à justiça que imagina, mas não à
essência da lei, que está encerrada em si: é lei e nada mais”.
Celso Mello e seus colegas deveriam reler Pascal
antes de se arvorarem paladinos da justiça, da ética e da moralidade. Não
porque não sejam éticos e justos, mas porque esses temas pertencem à esfera da
pesquisa filosófica, e mesmo assim, objetos de infinitas controvérsias. Quando
entra em jogo a política, então, nos deparamos com uma quantidade de areia
muito superior ao caminhãozinho dos juízes.
Não questiono o saber jurídico dos
excelentíssimos, mas que se atenham a examinar os autos, que para isso
pagamos-lhes os salários. Deixem as interpretações arbitrárias sobre o fazer
político para seus momentos de lazer.
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