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Tarso: o mensalão e a compra de votos por FHC


Publicado em 02/08/2012

O Estado Democrático de Direito é o melhor não porque ele é o Estado perfeitamente justo.




Mensalão e Judicialização da Política: a metáfora da mesa

Atualmente perpassa, na maioria da mídia tradicional, uma forte campanha pela condenação dos réus do “mensalão”, apresentando-os como quadrilheiros da impureza política. Os réus do “mensalão” e o PT já estão condenados. Já foram condenados independentemente do processo judicial, que muito pouco acrescentará ao que já foi feito, até agora, contra os indivíduos e o partido, sejam eles culpados ou não, perante as leis penais do país. O artigo é de Tarso Genro.

Tarso Genro (*)

O grande legado da chamada “era Lula” não é o “mensalão”. Nem este é o maior escândalo da história recente do país. Se a compra de votos para a reeleição do Presidente Fernando Henrique Cardoso – que certamente ocorreu à revelia do beneficiário – tivesse a mesma cobertura insistente da mídia e se os processos investigativos tivessem a mesma profundidade das investigações do chamado “mensalão”, a eleição que sucedeu aqueles eventos poderia ter sido inclusive anulada e um mar de cassações de mandatos e de punições pela Justiça poderia ter ilustrado, ali sim, o maior escândalo institucional da República. Tratava-se da nulidade de um mandato presidencial, cuja viabilidade teria sido literalmente comprada.

Assim como o impedimento do Presidente Collor foi feito dentro do Estado Democrático de Direito, o processo do mensalão” também o foi. Isso é bom para o país e bom para a democracia. A compra de votos para a reeleição, porém, foi diluída em termos de procedimento penal e logo arquivada também politicamente. Naquela oportunidade a política não foi judicializada, consequentemente, não foi “midiatizada” e, como sabemos, na “sociedade espetáculo” de hoje o que não está na mídia não está na vida política.

O fato de que o Estado de Direito funcionou em todos estes casos não quer dizer que isso ocorreu de maneira uniforme. O tratamento não foi igual para todos os envolvidos. As ações e providências políticas no Estado de Direito refletem no espaço midiático de forma diversa e não cumprem finalidades meramente informativas. São “mercadorias informativas” cujo objeto não é promover necessariamente decisões judiciais perfeitas e justas, apenas passam o “olhar” dos detentores do poder de informar. A Justiça, como a renda, é sempre distribuída desigualmente, porque sobre a distribuição da Justiça e a distribuição de renda incidem fatores externos às suas normas de repartição ideal, que se originam da força política e econômica dos grupos envolvidos nos conflitos políticos.

O Estado Democrático de Direito é o melhor não porque ele é o Estado perfeitamente justo. O Estado de Direito é o desejável porque ele oferece melhores possibilidades de preservar direitos e acolher demandas e porque ele é a melhor possibilidade para preservar os direitos humanos e as liberdades públicas. O processamento dos réus do “mensalão” deve ser considerado, assim, como uma normalidade do Estado Democrático de Direito, mas o que não pode ser considerado como aceitável é o massacre midiático que já condenou os réus e condenou o PT e os petistas de forma indeterminada, antes do pronunciamento do STF. E isso não foi feito de maneira ingênua.

Vejamos porque isto ocorre. O grande legado da “era Lula” foi, além do início da mudança do modelo econômico anterior, o início de uma verdadeira “revolução democrática” no país, o que fez o seu governo ser tão combatido pela direita neoliberal, cujas posições refletem na maior parte da grande mídia, que é plenamente posicionada nos conflitos políticos e econômicos do país.

Mas o que é esta “revolução democrática”? Suponhamos que a democracia seja uma grande mesa onde todos, abrigados no princípio da igualdade formal, sentam-se para viabilizar seus interesses e disputar algo da renda socialmente gerada pelo trabalho social. Nesta grande mesa (resultado aqui no Brasil da Constituição Democrática de 88), entre a promulgação da Constituição e os governos FHC, todos sentavam nos lugares reservados por aquele ordenamento. Obviamente, porém, alguns sentavam em bancos mais elevados, viam toda mesa, observavam o que estava em cima dela para adquirir, para comprar, para “pegar” pela pressão ou pelo Direito. Conversavam entre si de maneira cordata, transitavam “democraticamente” os seus interesses, tendo na cabeceira da grande mesa os Presidentes eleitos.

Outros estavam sentados em bancos tão baixos que não viam o Presidente, não participavam do diálogo, não sabiam o que estava em cima da mesa. Não tinham sequer a quem se reportar em termos de exercício do seu poder de pressão. Estavam só formalmente na mesa democrática, sem poder e sem escuta. O que Lula promoveu foi apenas a correção da altura dos bancos, que agora permite aos trabalhadores, sindicalistas ou não, com as suas grandezas e defeitos, os “sem-terra” e “sem-teto”, os que não contavam nas políticas de Estado, os excluídos que não podiam ascender na vida (inclusive os grupos empresariais e setores médios que não tinham influência nas decisões do Planalto) verem o que sempre esteve em cima da mesa.

O simples fato de ver e dialogar permitiu que estes contingentes sociais passassem a disputar a posse de bens e uma melhor renda. A democracia em abstrato tornou-se um jogo mais concreto. Os governos Lula, assim, levaram a uma nova condição o princípio da igualdade formal, que começa pelo direito das pessoas terem a sua reivindicações apreciadas pelo poder, impulsionadas pelo conhecimento do que pode ser repartido e do que está “em cima” da mesa da democracia.

Isso foi demais. Significou e significa um bloqueio à ruína neoliberal que perpassa o mundo e, embora tenha sido um projeto também negociado com o capital financeiro, trouxe para a política, para o desejo de mudar, para a luta por melhorias concretas, milhões e milhões de plebeus que estavam fora do jogo democrático. Estes passaram a comer, vestir, estudar e reduzir os privilégios da concentração de renda.

A “plebeização” da democracia elitista que vigorava no Brasil é o fator mais importante do ódio à “era Lula” e do superfaturamento político do “mensalão”. Este é o motivo do superfaturamento, que pressiona o STF para que este não faça um julgamento segundo as provas, mas faça-o a partir de juízo político da “era Lula”, que cometeu o sacrilégio de “sujar” com os pobres a democracia das elites.

Para não entrar em debates mais sofisticados sobre Teoria Econômica, situo como premissa – a partir de uma ótica que pretende ser de grande parte da esquerda democrático-socialista – o confronto político sobre os rumos da sociedade brasileira, após a primeira eleição do Presidente Lula: de um lado, tendo como centro aglutinador os dois governos do Presidente Fernando Henrique, um bloco político e social defensor de um forte regime de privatizações, alinhamento pleno com os EEUU em termos de política global -inclusive em relação ao combate às experiências de esquerda na América Latina- com a aceitação da sociedade dos “três terços” (um terço plenamente incluído, um terço razoavelmente incluído e um terço precarizado, miserável ou totalmente fora da sociedade formal, alvo de políticas compensatórias), experiência mais próxima do projeto de sócio-econômico dos padrões neoliberais, que hoje infernizam a Europa; de outro lado, tendo como centro aglutinador os dois governos Lula, um bloco político e social que “brecou” o regime de privatizações, reconstruiu as agências financeiras do Estado (como Bndes, Banco do Brasil e Caixa Federal, para financiar o desenvolvimento), estabeleceu múltiplas relações em escala mundial -libertando o país da tutela americana na política externa- protegeu as experiência de esquerda na América Latina e desenvolveu políticas públicas de combate à pobreza, programas de inclusão social e educacional amplos, tirando 40 milhões de brasileiros da miséria, com pretensões mais próximas das experiências social-democratas, adaptadas às condições latino-americanas.

Estes dois grandes blocos têm no seu entorno fragmentos de formações políticas que ora se adaptam a um dos polos, combatem-se, ou fazem alianças pontuais sem nenhuma afinidade ideológica. Como também fazem alianças as direitas liberais com a extrema esquerda e o centro, ora com a esquerda, ora com a direita. Mais frequentemente estas alianças foram feitas para paralisar iniciativas dos governos Lula, que sobrevivem até o presente, como as políticas de valorização do salário-mínimo, as políticas de implementação do Mercosul, a política externa quando valoriza os governos progressistas latino-americanas e as políticas, em geral, de combate às desigualdades sociais e regionais.

Atualmente perpassa, na maioria da mídia tradicional, uma forte campanha pela condenação dos réus do “mensalão”, apresentando-os como quadrilheiros da impureza política. A mídia seleciona imagens e produz textos que já adiantam uma condenação que o Poder Judiciário terá obrigação de obedecer, pois “este é o maior escândalo de corrupção da história do país”, o que certamente começou com o Partido dos Trabalhadores e seus aliados no governo.

Os réus do “mensalão” e o PT já estão condenados. Já foram condenados independentemente do processo judicial, que muito pouco acrescentará ao que já foi feito, até agora, contra os indivíduos e o partido, sejam eles culpados ou não, perante as leis penais do país. O processo judicial, aliás, já é secundário, pois o essencial é que o combate entre os dois blocos já tem um resultado político: o bloco do Presidente Lula, em que pese a vitória dos seus dois governos, tornou-se – partir do processo midiático – um bloco de políticos mensaleiros, cujas práticas não diferem, no senso comum, de qualquer dos partidos tradicionais. Vai ser muito duro recuperar estas perdas. Mas elas serão recuperadas, pois o povo já se acostumou a ver o que está em cima da mesa da democracia e sabe que ali tem coisas para repartir.

(*) Governador do Estado do Rio Grande do Sul

Fonte: Carta Maior

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