O script do golpe (no blog da Cidadania)
Vencidas as inacreditáveis ingenuidade e imprudência de democratas
bem-intencionados que chegaram a crer que a direita midiática
continuaria aceitando ser contrariada por uma vontade popular que as
urnas teimam em expressar eleição após eleição desde o histórico 2002, é
chegada a hora de ler o script do golpe – que já não se esconde.Retrocedamos, pois, ao limiar daquele outono de 1964, quando, já em
nome do “combate à corrupção”, os mesmos meios de comunicação evocavam a
“ética” contra o governo trabalhista de então, que, tenhamos presente,
cometia o “crime” de combater a desigualdade renitente que infecta a
nação há 500 anos, só que com muito menos ousadia do que o atual.
No início dos anos 1960, o Coeficiente de Gini,
que mede a concentração de renda das nações, em sua versão
verde-amarela, já altíssimo, alcançava a marca pornográfica de 0,52 –
quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade.
Aos trancos e barrancos, no limiar do golpe Jango Goulart retomara,
em certa medida, o controle do governo, após tentativas civilizadas de
impedir que adotasse medidas contra uma chaga nacional que escandalizava
o mundo e mantinha o país agrilhoado ao atraso.
A expressão “reforma agrária” também escandalizava, só que aos
detentores do que, à época, tinha muito mais importância do que hoje: a
propriedade da terra. E, para colocar lenha na fogueira, os movimentos
estudantil e sindical se entregavam, entre um devaneio e outro, ao
idílio socialista. E o que é pior: sem fazer maior segredo.
Os arreganhos golpistas, para se venderem à sociedade, não falavam no
“direito” dos ricos a concentrarem parcela indecente da renda. A ideia
de que o povo estava sendo roubado pelo governo justificaria melhor a
conspiração que já germinava nas redações dos donos da “imprensa”.
Era preciso, pois, construir “razões” para justificar o uso da força
bruta a fim de obter o que, cada vez mais, ficava evidente que não seria
obtido pelas urnas – até porque, na falta de votos, fraudá-las seria
impossível estando os “comunistas” no poder, pois são os governos que
organizam eleições.
Dez anos antes, a mesma desculpa fora usada para acuar aquele que,
heresia das heresias, ousara erigir uma legislação trabalhista que
tantos “custos” acarretara ao “pobre” capital.
A história do Brasil, como se vê, é a prova de que a “corrupção”
sempre foi o artifício do capital e das elites para manter a esquerda,
seu trabalhismo e seu viés distributivista de renda longe do poder de
Estado.
A pontuação do coeficiente de Gini, naquele outono de 1964, era pouco
maior do que é hoje. Com a ditadura, as coisas foram postas no lugar,
ou seja, de 0,52, naquele momento, ao fim da ditadura foi parar em cerca
de 0,60, em um processo que tornou o rico mais rico e o pobre, mais
pobre.
Entre todas as razões para o golpismo se erguer de novo por estas
bandas, portanto, a queda vertiginosa do Gini que marcou os governos
Lula e Dilma explica, como nada mais, a volta das acusações de corrupção
ao grupo político que, no poder, é responsável por, em dez anos,
devolver ao Brasil o que a ditadura levou vinte para lhe roubar – em
2012, o índice é pouco menor do que o de 1964.
No entanto, se as razões de hoje para o golpismo via acusações de
corrupção ao governo de turno são as mesmas de há meio século, o script
do golpe teve que ser reescrito. Não existe mais o inimigo externo a
ameaçar tomar os bens das famílias mais abastadas para entregá-los à
ralé preguiçosa, morena e inculta.
Sem a ameaça de tropas vermelhas a marchar sobre a nação, não se
justifica mais o uso das forças armadas para golpear a democracia. É por
aí que começou a ser construída, em Honduras, uma modalidade de golpe
que há pouco se reproduziu no Paraguai de forma mais próxima – porém
ainda grosseira – do modelo que se pretende aplicar por aqui.
O golpe “constitucional” de Honduras inaugurou a modalidade, o do
Paraguai a refinou um pouco mais, mas ainda não o suficiente para ser
usada no Brasil. O ansiedade por retomar o poder naqueles países pecou
pelo tempo escandalosamente curto para desenvolver o processo.
No Brasil, com a comunicação de massas, o Judiciário, os militares e
boa parte da classe política de acordo, pode-se dar tempo ao tempo,
começando a devorar a democracia pelas beiradas.
A aceleração que se está vendo do processo, portanto, deve-se à gota
d’água que foram as eleições de 2012, que extirparam aos golpistas
contemporâneos qualquer esperança em obter do povo a colaboração
eleitoral para recolocá-los no poder.
Pela burrice de que padecem os autoritários, confiaram na “burrice”
popular que acreditaria, por exemplo, em uma revista que há dez anos,
semana após semana, só enxerga e denuncia corrupção em um único partido,
em um único nível de governo. Passada a última surra eleitoral,
aplicada bem quando a bomba atômica (o julgamento do mensalão) foi
detonada, não há mais esperança.
A condenação ditatorial de José Dirceu, José Genoino e outros
petistas menos relevantes não conspurcou nem o PT, nem Lula e muito
menos o governo Dilma Rousseff. Acabaram-se as ilusões.
Assim, o golpismo destro-midiático descobriu que o povo simplesmente
se recusa a acreditar que o PT inventou a corrupção no país – premissa
contida no fato de petistas serem os primeiros políticos a ser
condenados pelo STF após mais de cem anos de história republicana.
Eis que a ingenuidade de Lula e de Dilma, quase inacreditável, foi um
presente dos deuses – ou dos demônios – para o golpismo tupiniquim.
Lula, um estrategista político como nunca se viu outro no Brasil,
nomeou, de olhos fechados, inimigos políticos para o cargo que dá a quem
ocupa a prerrogativa de processar até o presidente da República.
Dessa maneira, há poucas dúvidas – se é que existe alguma – de que o
doutor Roberto Gurgel aceitará, gostosamente, a denúncia que a oposição
faz àquele que responsabiliza por suas derrotas eleitorais, o que ela
faz por não entender que o que leva o povo a votar nos que ele indica
não são seus belos olhos, mas a distribuição de renda e oportunidades.
Os golpistas mais espertos, então, já sabem que anular Lula será
insuficiente enquanto a vida do brasileiro continuar melhorando. Mesmo
que consigam fazer o processo dele andar até as eleições de 2014, de
forma a chegar lá desmoralizado, a situação do país reelegerá Dilma.
Se mesmo após Lula ter sido inocentado nas investigações sobre o
mensalão agora estão conseguindo envolvê-lo com matérias meramente
opinativas de revistas e jornais, o que custará “descobrirem”, antes de
agosto – quando Gurgel será substituído –, que a presidente, que
integrou o governo anterior, também integrou a “quadrilha”?
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